Passagem de Zeca Afonso por Belmonte
Zeca Afonso
Atrevo-me a dizer que é verdade que o bom senso me desaconselha a reproduzir certas palavras de Zeca Afonso sobre Belmonte. Creio mesmo que, em tempo de Comemorações dos 500 anos do Achamento do Brasil, por Pedro Álvares Cabral, navegador de raiz belmontense, seria politicamente correcto… omitir.
Mas é certo que a sua intransigência na defesa de princípios e valores tornaria imperdoável desvirtuar as suas memórias. Vénias rituais nunca couberam na voz em que ressoava a poesia e o apelo à fraternidade. É, por isso, proibido, imoral, esconder a fala do mistério duma relação com as gentes e um lugar…
Em 1938, diz “…fui para casa de meu tio (em Belmonte) onde vivi o pior ano da minha vida, o mais desgraçado. O meu Tio era Presidente da Câmara, comandante da Legião, germanófilo (…)”*. Foi um período “fechado”. Sentia-se só, privado de contactos. Lembranças que não oculta, justifica e ilumina em busca de outra verdade: o tio que assinava o “Sinal” e outras revistas, que faziam o elogio do esforço bélico alemão, que sintonizava a Rádio Paris colaboracionista… “teve uma coisa boa: ensinou-me cantigas populares antigas da Beira; ouvi-o cantar líricas de óperas (…)”*; acrescenta: “foi ele que me incutiu o gosto pela música”*.
O prisma das cores é múltiplo e de Belmonte ficaram imagens polícromas. E guardou também o Professor Tavares “… que gostaria de ver porque era um indivíduo sério”; e os jogos populares (canicho e bilharda) em que não participava por ser “sobrinho do senhor doutor”.
Na vila acontece-lhe a primeira “paixoneta”, por Helena Cabeças que “… me desapareceu furtada por um indivíduo com muito mais experiência do que eu”*; a segunda nasce também na localidade, por uma rapariga judia: “Nutri por ela uma paixão inexprimível e inenarrável”*. Amores que não eram confessados e eram vividos em tempo de passar férias na casa do Tio.
Sem dúvida que o passado que se conta, não pode ser se não imperfeito… e, (quantas vezes!) contraditório. Todavia, o saber que diz aquele Belmonte, a ternura com que acalentou as memórias desvelam a verdade de um lugar e de um tempo com versões verdadeiras…
Talvez, por isso, ainda em Abril, em 1974, veio à Beira e a Belmonte festejar a Esperança de um tempo novo. No Castelo teve uma recepção inigualável. Toda a gente sabia quem era Zeca Afonso, a liberdade rodopiava por ali a propiciar intimidades, cumplicidades, fraternidade. Zeca estava do lado dos desfavorecidos, ninguém ignorava. Na vila tinha sido o “sobrinho do Senhor doutor”. No Castelo , ouviu, então: “Ó meu sacana não te lembras, quando me atiraste um calhau às costas?” O Zeca olhou-o estremecido; condoído abraçou-o, e saiu-lhe “Ó pá, desculpa lá isso!”.
Guardou esta história e lembrava-a, quando nos juntávamos.
As “meninas Martinho”, como dizia, tinham também lugar no álbum da memória. A última vez que falámos, quando desaparecia a esperança de voltar à Beira, pediu: “Dêem um abraço às meninas Martinho”. E no dia em que a Zélia Afonso, veio a Belmonte para participar na homenagem da Câmara Municipal, ao Zeca, em 1990, Judite Martinho ofereceu-lhe uma peça que confeccionara com carinho “… uma lembrança para o enxoval da filha, da menina”.
Em Belmonte, uma placa lembra Zeca Afonso; foi colocada em frente da casa doutro amigo – Zeca Argentina -, junto da Escola Primária mais antiga, num largo que, pelo Natal, ouve a voz do Zeca:
“Muita neve cai na serra,
Muita neve cai na serra,
Só se lembra dos caminhos velhos,
Quem tem saudades da terra.”.
Nota: * José A. Salvador, Livra-te do medo, Lisboa, A Regra do Jogo, 1984
Maria Antonieta Garcia – 20.4.00