Gastão era perfeito
Contrariamente ao que o nome no título sugere, não se trata aqui de uma pessoa que realmente existiu. “Gastão” é um tipo , criado para retratar o “bom cidadão” sob o fascismo. Ele reúne em si todas as qualidades do oportunista, de quem se adapta ao sistema vigente para obter beneficios individuais, sem se preocupar com o sofrimento das outras pessoas. Ele não apoia a Igreja por ser um católico devoto, nem tolera os abusos do seu patrão por ser um empregado dedicado. Todos os seus actos resultam de cálculos muito precisos ou, como é o caso com a sua “mãe que era entrevada”, da sua vontade de sair do fastio da vida quotidiana. A ausência total de qualidades humanas como a solidariedade e a generosidade, e também a sua disposição doentia, fazem dele uma caricatura. No entanto, o texto contém um aviso: Gastão nasceu pobre, num bairro da lata em Alverca. Ao ascender a uma posição mais favorável na vida (“no solestício de Junho”) passou a identificar-se com a classe dominante, dando-se até ares de nobreza (“sobrinho do Fernão Peres de Trava) e fixando residência no Palácio da Pena, em Sintra, a cidade onde a aristocracia tradicionalmente passava as férias. Há ainda outros textos em que José Afonso assinala que o inimigo da emancipação do povo não é um conceito abstracto, mas sim concreto e vivo, personificado por todos aqueles que se conformam com o sistema (p. ex. “Tenho um primo convexo”). Mas é Sérgio Godinho que realmente se destaca por tão vivamente pintar as figuras autoritárias, oportunistas, etc., na sociedade portuguesa.
in “A canção de intervenção portuguesa – Contribuição para um estudo e tradução de textos” de Oona Soenario, 1994-1995, Universidade de Antuérpia