Um músico genial mas que não passa na rádio
O músico David Fonseca diz que não está à vontade para falar sobre José Afonso. “Aprecio-o muito mas sinceramente não sinto que tenha sido uma influência e não conheço assim tão bem a obra.” Nuno Gonçalves, dos The Gift, repete esta argumentação: “Respeito-o imenso e sei da importância que ele teve mas talvez me tenha estimulado mais por ser uma pessoa inconformada do que em termos musicais.” O rapper Sam the Kid samplou “uma vez os passos do Grândola, como toda a gente” e até ouve bastante música portuguesa mas prefere temas mais orquestrados do que acústicos. Todos o conhecem e respeitam mas qual o legado que José Afonso deixou, de facto, aos mais jovens músicos portugueses?José Afonso morreu em Setúbal faz hoje 20 anos e, hoje, a sua música vai ouvir-se na rádio, haverá depoimentos na televisão, alguns encontros pelo país, anunciam-se discos de homenagem. Só hoje. “E se não fossem as efemérides talvez nunca o ouvíssemos”, arrisca o crítico musical João Gobern. “José Afonso tornou-se igualmente incómodo antes e depois do 25 de Abril. É impossível pôr em causa a sua qualidade musical, por isso houve quem preferisse atacá-lo pelo lado político.” Mais próximo das utopias do que “das grandes tramóias políticas”, José Afonso tornou-se inconveniente, diz. “Mesmo reconhecendo o seu valor, sabendo que ele tinha um sentido harmónico extraordinário e uma voz excelente.” “O Zeca foi injustiçado em vida e continua a ser muito injustiçado depois de morrer, deveria ser muito mais ouvido e mais lembrado do que é”, confirma Janita Salomé, amigo de José Afonso e um dos poucos que faz questão de manter a memória do seu mestre em discos e espectáculos. “Ele era uma pessoa politicamente empenhada mas, além disso, há a obra poética que é excelente e há o legado musical que é incontornável. Parece-me que o estigma político é muito forte, como se houvesse uma incompatibilidade entre o empenhamento político e a qualidade musical.” Talvez seja preciso passar mais tempo, conclui. “A próxima geração estará distante politicamente e poderá, por isso, ter um olhar menos preconceituoso sobre a obra.”
Músico popular e universal
Exceptuando os músicos da sua geração, como Sérgio Godinho, José Mário Branco ou Vitorino, são poucos aqueles em que se reconhece essa herança de que todos falam mas que poucos usam. A culpa é da comunicação social e dos “padrões estéticos anglo-americanos que são impostos”, diz Janita Salomé. Ou, como explica Quim Barreiros, “os músicos de agora não fazem música popular porque não podem, não são capazes. São melhores músicos mas não têm as referências do folclore, como nós tínhamos.” Poucos se lembram, mas Quim Barreiros chegou a colaborar com José Afonso, no álbum Com as minhas tamanquinhas, de 1976. “O telefone tocou às duas da manhã. Era o Zeca Afonso, que estava com problemas em duas músicas baseadas em folclore e precisava da minha ajuda. Disse-me: pegue na sua gaita e venha cá.” Naquela altura, José Afonso e Quim Barreiros gravavam na mesma etiqueta, a Orfeu, e utilizavam os mesmos estúdios. “Às vezes íamos juntos a umas tasquinhas ali perto”, recorda o acordeonista. Isto apesar das discordâncias políticas. José Afonso era um músico ecléctico, ao mesmo tempo culto e popular. Camané recorda a dificuldade que encontrou quando uma vez tentou interpretar um tema seu: “As músicas dele não eram fáceis de cantar e ele conseguiu pôr o povo a cantá- -las.” E acrescenta: “Ele é talvez um dos melhores músicos portugueses de todos os tempos. Está muito para além da música de intervenção, era um compositor acima da média e um cantor extraordinário. Eu era miúdo quando foi o 25 de Abril e para a minha geração o José Afonso é incontornável, estava sempre na rádio.”Se o fadista aprendeu muito ouvindo Zeca Afonso, Manuel Rocha, da Brigada Vítor Jara, ainda se lembra dos 216 escudos que pagou por Coro dos Tribunais, o primeiro disco que comprou. “Em Coimbra, o Zeca anunciou novas músicas, trilhou caminhos. Ao mesmo tempo, foi um dos primeiros que trabalhou a música tradicional, com cuidado e bom gosto, e que lhe juntou todas as influências, que eram suas e nossas, de África. A sua música, fundada na cultura portuguesa, era universal”, conclui. “Ele criou uma nova forma de ser músico e isso influenciou todos os músicos de hoje, mesmo que não se note na música que fazem.” Além disso, diz, esperançoso, “o êxito é fácil mas os músicos importantes são aqueles que resistem ao seu tempo. E se há uma coisa boa na modernidade é que tudo fica registado, preservado. À espera do seu momento. Bach só foi descoberto muito mais tarde, não foi?”.
Maria João Caetano Díario de notícias Sexta, 23 de Fevereiro de 2007
Agora com 68 anos, ouvi Zeca ao vivo pela primeira vez nos jardins da AAC (1969) sitiada pelas forças de segurança e infiltrada de agentes da torcionária polícia politica (DGS). Tenho todos os seus álbuns em vinil, os últimos já em CD. Foi nos meus arquivos discográficos, onde constam ainda quase todos os outros grandes obreiros da MPP dos anos 60 aos anos 90, que meu filho Jorge Cruz (criador e compositor dos “Diabo na Cruz”) adolescente ainda, bebeu muito da cultura musical que felizmente o impregnou estruturalmente e serviu de plataforma para que a sua criatividade artística fizesse o resto. Jorge Cruz, que também não passa nas rádios comerciais, sendo um dos novos compositores da MPP, nunca deixa de afirmar publicamente, em entrevistas `nos media, que considera José Afonso o pai da actual MPP e uma influência incontornável para a musica que compõe. Ricardo Romano um notável bloguista musical, terminou um excelente texto sobre a obra de Zeca Afonso com as seguintes palavras: “..Se hoje há Gaiteiros de Lisboa e Amélia Muge, A Naifa ou o Diabo na Cruz, há-os porque Zeca desbravou o caminho da reinvenção das raízes. Enquanto houver gente a ser inspirada pelo seu génio melódico e pela sua referência humanista, Zeca Afonso viverá…”.