Congresso Internacional José Afonso 2024
José Afonso é uma das maiores referências da nossa cultura contemporânea, cuja obra importa conhecer e divulgar. A profunda ligação de José Afonso à cidade de Setúbal e desta àquele impõem o destaque que lhe é dado nestas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Neste sentido, realizar-se-á um congresso dedicado à discussão e divulgação das várias actividades de José Afonso (1929-1987), que reúna tanto especialistas dedicados ao estudo das várias facetas da sua obra como colaboradores e amigos do cantor, em sessões testemunhais. Para além da discussão em torno da sua prática musical, pretende-se que este evento aborde um extenso conjunto de temas, contemplando a sua intervenção cívica antes, durante e depois do período revolucionário de 1974-75, em defesa da liberdade e da democracia.
Desta forma, pretende-se que este evento constitua uma oportunidade, até hoje inédita, de amplo cruzamento de vários saberes sobre o percurso de José Afonso, procurando intersectar a investigação académica com outros campos dedicados à preservação e divulgação da memória do cantor. O Congresso incluirá ainda outras actividades, como exposições ou sessões musicais. Pretende-se também que a realização deste congresso estimule a localização e recolha de documentação e material fonográfico relacionado com José Afonso para posterior preservação.
Programa
25 OUT
26 OUT
27 OUT
17:30h
Encontro de malta de Setúbal amiga do Zeca
Adega dos Garrafões, Rua Arronches Junqueira, 103, Setúbal.
10:00h - 10:30h
Abertura com representantes das instituições organizadoras
(André Martins, Presidente da CM de Setúbal; Francisco Fanhais, Presidente da Direcção da AJA; Luís Trindade, Presidente da Direcção do IHC; Manuel Deniz Silva, Presidente do INET-md)
10:30h - 11:15h
“Estou farto de dizer por toda parte que a Galiza não é a Espanha. O compromiso do Zeca coa Galiza”
Conferência de Antón Mascato (moderação por Pedro Tadeu)
11:30h - 13:00h
Painel de comunicações 1 (moderação por Ana Sequeira):
“A continuação do legado de José Afonso nos grupos culturais da Universidade do Minho”
Ana Francisca Silva (Universidade do Minho)
“Amor e verdade - aprender e ensinar em José Afonso”
João Freitas Mendes (Vrije Universiteit Brussel)
“Política do Ritmo/Poeticidade do Mundo”
Mauricio Salles Vasconcelos (FFLCH / USP)
15:00h - 16:30h
Sessão testemunhal sobre a actividade musical de José Afonso
Com a participação de Janita Salomé, Francisco Fanhais e Carlos Guerreiro (moderação por Ricardo Andrade)
16:45h - 18:15h
Painel de comunicações 2 (moderação por João Madeira):
“Da censura explícita a outras formas de silenciamento”
Anália Gomes
“A Música Popular Açoriana na Obra de José Afonso”
Catarina Cota (FLUC)
“Quando se canta a si, o que canta o Zeca?”
Jorge Martins (FLUL)
“José Afonso de capa e batina”
Simão Mota (FLUC)
18:30h - 19:30h
Sessão "Novos conhecimentos sobre a obra de José Afonso"
Conversa com Octávio Fonseca e Viriato Teles (moderação por Hugo Castro)
21:30
Concerto
Francisco Fanhais, Manuel Freire e Rogério Cardoso Pires
10:00h - 11:30h
Painel de comunicações 3 (moderação por Helena Fonseca):
“José Afonso em Setúbal - Como se fora seu filho”
Albérico Afonso Costa (IHC / NOVA FCSH)
“Cantar Poder Popular” – percursos de José Afonso na Revolução (1974-1976)”
Hugo Castro (INET-md / NOVA FCSH)
“Não faltes ao encontro sê constante” – José Afonso e a “unidade popular”
João Madeira (IHC / NOVA FCSH)
“Para onde é que eu vou levar o meu «pai»?” - José Afonso, José Mário Branco e a gravação de Cantigas do Maio”
Ricardo Andrade (INET-md / NOVA FCSH)
11:45h - 13:15h
Apresentação de livro “Semeador de Palavras – Entrevistas a José Afonso”
Com Luísa Tiago de Oliveira, José Rodrigues e Guadalupe Portelinha
15:15h - 16:00h
Conferência de Rui Vieira Nery (moderação por Albérico Afonso Costa)
16:15h - 17:45h
Painel de comunicações 4 (moderação por João Santos):
“Ecos de Grândola, vila morena no cinema: do consenso comemorativo à heterogeneidade das formas”
Agnès Pellerin (INET-md / NOVA FCSH)
“Pensar a tradição: Paralelismos entre O Pão (1959) de Manoel de Oliveira e Cantares do Andarilho (1968) de José Afonso”
Matilde Dias (NOVA FCSH)
“Traz um amigo também - José Afonso entre Paris e Galiza”
Sara Maia (CESEM / NOVA FCSH)
"Santiago de Compostela, 12 de maio de 1972: a experiência mais maravilhosa”
Arturo Reguera
18:00h - 19:30h
Sessão testemunhal sobre a ligação de José Afonso à cidade de Setúbal
Com a participação de Henrique Guerreiro, Luísa Ramos e Manuela Palma Rodrigues (moderação por Teófilo Duarte)
Resumos
Agnès Pellerin: Ecos de Grândola, vila morena no cinema: do consenso comemorativo à heterogeneidade das formas
“A maioria das canções criadas num objectivo político apenas alcançaram círculos militantes (...) as grandes canções políticas tornaram-se políticas por apropriação” (Martin Pénet). Tal foi o caso de Grândola, Vila Morena, canção de José Afonso gravada nos arredores de Paris em 1971 e usada pelos militares como uma das senhas das operações na noite do 24 para o 25 de Abril de 1974. Tornou-se a canção mais famosa e cantada do cantor e sua difusão nas ondas da Rádio Renascença constitui hoje um episódio central da “história familiar” da Revolução e do seu “cenário” (Luís Trindade).
Como o cinema contribuiu para esta apropriação de Grândola Vila Morena na memória colectiva? Como desafiou a invisibilidade da difusão radiofónica? Como resolveu a aparente contradição entre a radicalidade dos acontecimentos, o “choque narrativo” que representam (Luís Trindade) e a quase “rotina” das quadras, marcadas pela repetição dos versos e pela “austeridade” musical do cante alentejano. Como o cinema encenou os famosos passos que parecem ter antecipado os militares em marcha, “profetizando” a queda da ditadura? Em que medida filmes realizados fora de Portugal permitiram à canção ecoar no estrangeiro?
Por um lado, a canção parece ter fornecido ao cinema uma matéria evidente, particularmente eficaz em termos de lisibilidade política e cronológica da Revolução, capaz de federar, enquanto “hino” (Didier Francfort), um público de espectadores envolvidos em dinâmicas de comemorações. Mas por outro lado, as suas apropriações pelo cinema não foram nem homogéneas nem consensuais.
Esta contribuição pretende analisar, através dum corpus de filmes que usaram Grândola, vila morena na banda sonora - do cinema revolucionário e militante, usando imagens de arquivo, ao cinema de ficção mais recente, assumido como reconstituição histórica - como as formas cinematográficas, colocam, para além da “verdade histórica” - a questão ética da relação ao espectador e ao passado, particularmente problemática no filme histórico (Sylvie Lindeperg). Como reativaram a sua força performativa e política?
Nota biográfica
Agnès Pellerin é atualmente investigadora na Universidade nova de Lisboa (INET-md) no quadro do projeto EXIMUS “Música e exílio”, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Autora duma tese sobre o uso da canção como representação do povo no cinema português na Universidade de Paris 8 (2020), foi membro da Casa Velasquez e investigadora visitante no ICS – ULisboa, onde desenvolveu investigações sobre o papel da música no cinema colonial. Publicou um livro sobre o fado na editora Chandeigne (2003, réed. 2016) e é co-autora do livro Les Portugais à Paris au fil des siècles et des arrondissements (Chandeigne, 2009).
Albérico Afonso Costa: José Afonso em Setúbal - Como se fora seu filho
José Afonso viveu os últimos 20 anos da sua vida em Setúbal. Nesta comunicação propomo-nos analisar a intensa interação entre o cidadão José Afonso e a cidade rebelde que o acolheu durante estes anos.
Iremos tentar surpreender a sua presença, em Setúbal, numa dupla perspetiva: Na dimensão da sua intervenção como ator político e na profunda ligação que estabelece com a cidade neste período da sua vida.
Enquanto ator político encontramo-lo na azáfama quotidiana da luta contra a ditadura, na influência que tem nos circuitos oposicionistas, no dar o corpo às balas a nada se escusando, e, sobretudo, na casa que ajudou a criar e de que foi sócio fundador – O Círculo Cultural de Setúbal. Este espaço antifascista, que olha a cultura de frente, sem tibiezas, numa dinâmica de radicalização que se pressente à medida que o tempo vai passando, este espaço escolar, alternativo, espaço de palestra, de política, de formação de jovens quadros operários não teria sido o mesmo sem esta figura fundadora.
O Círculo constitui-se desde o seu início como uma segunda casa quer para José Afonso, quer para uma jovem colmeia, operária e estudantil, que o frequentava e nele operava, ia operando, as mudanças possíveis e impossíveis. Das janelas do Círculo respirava-se a cidade.
A cidade da situação que olhava com desprezo o professor demitido pelo regime e a outra cidade a que começou a pertencer, e que o acolheu com o calor próprio de uma urbe operária e industrial, inconformada e em mutação violenta, que encontra neste homem um arauto de uma mudança inevitável e profundamente desejada. E se é verdade que Setúbal se apropriou de José Afonso como se fora seu filho, também é verdade que José Afonso se referenciará a esta cidade como território seu, espaço que influencia e pelo qual é profundamente influenciado.
A Setúbal destes anos não teria sido a mesma sem o autor de Grândola Vila Morena; mas também este poeta, cantor, compositor teria sido outro, sem este chão que o conheceu no último vinténio da sua vida.
Nota Biográfica
Professor Coordenador do Ensino Politécnico. Investigador integrado do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutorado em História Contemporânea, na especialidade de História Cultural e das Mentalidades, pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa, tem colaborado e coordenado projectos na área da História, Formação de professores e Formação Profissional. Tem vários trabalhos publicados nestas áreas de investigação. Publicou, entre outros, os livros A FPA, A Fábrica Leccionada–Aventuras dos tecnocatólicos no Ministério das Corporações, 2008; Roteiro Republicano de Setúbal (coord), 2010, (esgotado); História e Cronologia de Setúbal (1248-1926), 2011(esgotado); Salazar e a Escola Técnica, 2011 e Setúbal sob a Ditadura Militar (1926-1933), 2014 (esgotado); Setúbal Cidade Vermelha–Sem perguntar ao Estado qual o caminho a tomar (1974-75), 2017; Lugares de José Afonso na Geografia de Setúbal, 2019; Setúbal no Centro do Mundo, 165 anos do jornal O Setubalense (coord). 2020, Setúbal Sob o Estado Novo – A Resistência a Salazar, vol 1. 1933-1949, 2021 e Setúbal Sob o Estado Novo – A Resistência a Salazar e a Caetano, vol 2. 1950-1974, 2023; O Círculo Cultural de Setúbal-De ninho oposicionista a quartel-general da Revolução. Um redondo vocábulo pela mão de José Afonso, (2024). Em 2019 a Câmara Municipal de Setúbal atribui-lhe a medalha de honra da cidade na classe de atividades culturais.
Ana Francisca Silva: A continuação do legado de José Afonso nos grupos culturais da Universidade do Minho
José Afonso representa uma das vozes mais significativas de contestação ao regime do Estado Novo. Enquanto estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, José Afonso integrou a Tuna e o Orfeão desta Universidade. Este estudo identifica e problematiza a presença do seu legado e, em particular, da música de intervenção que o caracteriza, em catorze dos dezanove grupos culturais atualmente ativos na Universidade do Minho.
Com vista à obtenção de dados para a concretização deste estudo, foi aplicada a técnica de inquérito por questionário. O questionário realizado, que consubstancia o presente estudo é constituído por catorze perguntas e encontra-se estruturado em três grupos de questões. O primeiro grupo visa caracterizar genericamente o inquirido, o segundo caracteriza o nível de conhecimento dos grupos culturais face ao repertório de intervenção e se o mesmo é ou não parte integrante das suas atuações. Por último, o terceiro grupo procura percecionar o nível de conhecimento, opinião e atitude face à temática, ainda que, agora, completamente centrado em José Afonso.
Os resultados do inquérito permitiram analisar e refletir em que medida os grupos culturais contribuem para a preservação, divulgação e celebração do repertório de intervenção passados 50 anos da Revolução dos Cravos. Para além disso, possibilitaram aferir o entendimento da importância endereçada a Zeca Afonso enquanto figura cimeira do movimento de renovação da música portuguesa na década de 1960, e que canções do cantor e compositor fazem parte do respetivo repertório. Incidiu-se, de forma particular, na identificação e caracterização de três grupos culturais: TUM - Tuna Universitária do Minho (tuna masculina); Tun´Obebes – Tuna Feminina de Engenharia da Universidade do Minho (tuna feminina); e a TMUM – Tuna de Medicina da Universidade do Minho (tuna mista); que continuam a celebrar convictamente e a difundir os ideais de paz, justiça e liberdade, dando continuidade à tradição das tunas académicas, afirmando-se como herdeiras legitimas do legado de José Afonso.
Nota biográfica
Ana Francisca Rodrigues da Silva nasceu a 6 de Agosto de 1999, na cidade do Porto.
Iniciou os seus estudos musicais em 2014, na Banda Musical de Avintes, em trombone, com o professor Carlos Silva e, posteriormente, com a professora Beatriz Mendes, na Banda Marcial da Foz do Douro. No ano seguinte ingressou na ESPROARTE (Escola Profissional de Música e Arte de Mirandela), na classe do professor Nuno Scarpa, permanecendo na Esproarte até à conclusão do secundário, em 2018.
Frequentou masterclasses de aperfeiçoamento musical com os pedagogos e artistas, Marshal Gilkes, Alexandre Vilela, Nuno Martins, Gonçalo Dias, Bruno Flahou, David Silva, David Tayor, Luis Bonilla, Hugo Assunção, Vítor Faria, João Martinho,André Conde, Filipe Alves e Joseph Alessi. Como instrumentista de orquestra teve a oportunidade de colaborar com os maestros Dimitris Spouras, César Viana, José Maria Moreno, Jan Wierzba, Mathew Maslanka, Nuno Machado, Luís Ribeiro, Maciel Matos, Gustavo Delgado, Luís Carvalhoso, José Eduardo Gomes, Filipe Fonseca, Pedro Neves, Vítor Matos, Valter Palma e Rafa Aguilló Albors. Desde o início da sua carreira musical que frequenta bandas filarmónicas, tais como, Banda Marcial da Foz do Douro, Banda Musical de Gondomar e atualmente é membro fixo da Banda Musical de Vila Verde. Em 2019 foi admitida na Universidade do Minho na classe do professor Vítor Faria, finalizando em 2023 a sua licenciatura. Atualmente é aluna do primeiro ano de Mestrado em Ensino de Música, área de especialização em Ciências Musicais e Formação Musical.
Anália Gomes: José Afonso - Da censura explícita a outras formas de silenciamento
É meu propósito aprofundar pesquisas sobre a temática a partir da análise de documentos dos Arquivos da Torre do Tombo e da Casa Comum.org (Fundação Mário Soares e Maria Barroso), alguns já divulgados na blogosfera e nas redes sociais.
É certo que José Afonso, com arte e engenho, logrou contornar os ditames da Censura, fazendo canções que ultrapassam os circunstancialismos de época, aprimorando o recurso a metáforas, com um discurso por vezes considerado surrealista. Esse será um trabalho para outro contexto, com outro objetivo.
Detenhamo-nos, então, sobre a Censura: como José Afonso viveu e contornou o confronto com o poder instituído, como foi censurado, perseguido pela Polícia Política, silenciado por sistemáticas estratégias de intimidação, tendo sido várias vezes chamado a prestar declarações, e mesmo preso, pelo menos por duas vezes, uma das quais por três semanas, em 1973, na prisão de Caxias, sem culpa formada, sem direito a defesa.
Tudo começou com “Os Vampiros” e “Menino do Bairro Negro”, do EP “Dr. José Afonso em Baladas de Coimbra”, de 1963, mas eles, os vampiros, só deram por isso dois anos mais tarde, já Zeca Afonso estava em Moçambique. Segundo documentação consultada, apenas em julho de 1965 foi pedido parecer dado o carácter subversivo da letra das canções especialmente da intitulada "Os Vampiros", mas considerou-se não haver legislação que sustentasse a proibição. Que legislação terá sido, entretanto, produzida para que em janeiro de 1966 fosse realmente proferido auto de apreensão do referido disco?
Por sua vez, do EP “Cantares de José Afonso”, de 1964, a faixa "Ó Vila de Olhão" foi proibida de passar na Emissora Nacional. Não se encontram evidências de que o disco tenha sido retirado de circulação ou apreendido, como aconteceu com o "Baladas de Coimbra" de 1963 e com o LP "Baladas e Canções", de 1964, devido à faixa "Ronda dos Paisanos”. Houve, sim, a proibição de passar na Emissora Nacional a faixa "Ó Vila de Olhão" por nota de serviço de 28 de setembro de 1965; o disco foi inclusive riscado com lápis azul e com um prego nessa faixa do vinil. Em 1964 foram feitas duas prensagens do disco, não constando que tenha sido apreendido. Porém, em 1969, o disco voltou a ser editado, com nova capa, e, por precaução, a editora Valentim de Carvalho decidiu substituir essa faixa por versão instrumental pelo conjunto de guitarras de Jorge Fontes. Funcionou, portanto, a intimidação.
Acresce que houve outras formas mais subtis de censurar, como o seu nome ser subtraído de notícias sobre espetáculos em que participava, já após o regresso de Moçambique, sendo os outros nomes identificados e, no seu caso, apenas a referência a “um cantor de baladas” ou o seu nome ser substituído em artigos de jornais pelo anagrama de Zeca Afonso: Acez Osnofa.
A vida e a obra de José Afonso, percorrendo período significativo da segunda metade do século XX, entrelaçam-se com os anos negros do fascismo, da repressão, da Guerra Colonial, mas também com a revolução e com o pós-revolução, em que o seu desencantamento já era visível e em que, de certo modo, voltou a ser silenciado.
Nota biográfica
Profissionalmente não ligada à música, sou apenas uma admiradora incondicional da obra de José Afonso que, com o decorrer dos anos, tenho procurado conhecer mais a fundo. Fui professora do ensino secundário, atividade que iniciei na década de 70, no pós-25 de Abril, ainda enquanto estudante, terminando o percurso profissional, nos últimos vinte anos de atividade, como técnica em serviços centrais do Ministério da Educação.
O meu contacto com a obra de José Afonso era então, nos anos 70, pouco mais do que superficial, potenciado pelo papel de “Grândola Vila Morena” na Revolução.
O encantamento com algumas melodias de José Afonso, a tomada de consciência do seu papel pioneiro na renovação da música popular portuguesa, a admiração pelo seu empenhamento como Cidadão na transformação da sociedade – serão porventura fatores que conduziram, naturalmente, a um conhecimento mais estruturado da discografia e do percurso criativo enquanto Poeta e Músico. Na condição de cofundadora do Núcleo de Lisboa da Associação José Afonso, em 2012, participei durante cinco anos na organização de eventos, promovi a dinamização de outros a título individual. Aprendiza por conta própria, julgo contribuir de algum modo para a fruição e debate profícuo em torno da grandiosa obra de José Afonso.
Arturo Reguera: Santiago de Compostela 12 de maio de1972: a experiência mais maravilhosa.
O presente trabalho tenciona aprofundar a inter-relação entre o Zeca e a Galiza, o papel que neste processo teve a canção Grândola Vila Morena e a sua repercussão até à actualidade, assim como analisar o inusitadamente longo processo criativo desta canção.
Nota biográfica:
Arturo Reguera (Lugo, 1945) Licenciado em C. Económicas pola Universidade de Santiago de Compostela, foi chefe de Redação da Gran Enciclopedia Gallega, director da Editorial Sálvora, onde preparou entre outras cousas a edição da Poesía Galega Completa de Celso Emilio Ferreiro (1983). Dirigiu a realização do Atlas de Galicia (Ediciones NOS, Coruña 1982) e foi professor de Informática no Instituto San Clemente de Santiago de Compostela até a reforma (1984-2011). Participou na organização da primeira digressão de José Afonso pela Galiza (Ourense, Lugo e Santiago, 1972). Entre outras actividades, participou na grande homenagem “Enquanto há força” (Galiza, 1987) e na campanha “Unha rúa para José Afonso”, juntamente com Benedicto e Xan Guitián. Tambén participou, aquando da doença de José Afonso, na angariação de fundos na Galiza para as grandes despesas que a situação comportava.
Publicações:
Manjares quijotescos: “duelos y quebrantos” y “pan mal conocido/cocido”. In Polos vieiros das palavras – Homenagem a Modesto Hermida (Ed. Irindo, Vigo, 2014).
Castrelo de Miño: loita, represión, espolio, desastre ecolóxico, desastre humano. (Fundación 10 de marzo, Santiago de Compostela, 2016).
Miscelânea Afonsina. In José Afonso, O tempo e o modo. (Câmara Municipal de Grândola, Grândola, 2019).
Catarina Cota: A Música Popular Açoriana na Obra de José Afonso
Partindo da dissertação que estou a desenvolver neste momento: “Os Fluxos entre a Música Tradicional Açoriana e a Canção Coimbrã – Durante os anos 60 do séc. XX”, pretendo apresentar uma comunicação sobre a convivência de José Afonso com os estudantes açorianos no meio de Coimbra, durante a década de 60 do séc. XX, culminando nas diversas faixas de música açoriana que gravou nos seus álbuns. Neste sentido, a minha abordagem passará por, através de fontes escritas e orais, retratar as influências da música popular na música do cantautor, a importância do meio que o rodeava e que o levou a absorver estas contribuições e o José Afonso entre o Fado de Coimbra, o Contexto Académico e as primeiras baladas.
A imersão de José Afonso no ambiente coimbrão foi permeada por estudantes açorianos que proporcionaram um contato ímpar com a cultura musical do arquipélago. As trocas e experiências realizadas nesse contexto nutriram a sensibilidade musical do cantautor, alertando-o para novos horizontes sonoros, ainda que a música tradicional/ popular não fosse, de todo, novidade no seu repertório.
Ao conhecer melhor a música popular açoriana, que ouvia nos diversos convívios que frequentava pelas Repúblicas conimbricenses, José Afonso encontrou uma fonte inesgotável de inspiração. As melodias e as temáticas presentes nas canções tradicionais açorianas impregnaram a sua obra.
A década de 1960 foi um período de grande efervescência musical e cultural para José Afonso. A convivência com estudantes açorianos em Coimbra, aliada à sua sensibilidade artística e à abertura a novas influências, resultou em uma obra marcada pela riqueza e pela diversidade. A profunda imersão na música tradicional açoriana traduziu-se em canções que transcendem fronteiras e permanecem como um legado inestimável da cultura portuguesa.
Nota biográfica
Catarina da Rocha Cota, licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e, atualmente, mestranda em História Contemporânea pela mesma instituição onde está a desenvolver a sua dissertação com o tema “Os fluxos entre a Música Tradicional Açoriana e a Canção de Coimbra – Os anos 60 e o Disco Temas Açorianos (Baladas)", orientada pela Prof. Doutora Leonor Losa e pelo Prof. Doutor João Paulo Avelãs Nunes.
Hugo Castro: “Cantar Poder Popular” – percursos de José Afonso na Revolução (1974-1976)
O 25 de Abril de 1974 proporcionou um renovado estatuto aos cantores que se haviam destacado na luta antifascista. José Afonso, autor de uma das senhas-rádio que desencadeara o golpe militar e um dos principais protagonistas da canção de protesto contra a ditadura, emergia na generalidade dos meios de comunicação como símbolo da revolução e da liberdade conquistada. Ao longo do período revolucionário (1974-1976), José Afonso seria amplamente solicitado para eventos e jornadas de solidariedade com a revolução, tanto em território nacional como noutros países (participa, por exemplo, na Fête de L’Humanité em França, organizada pelo Partido Comunista Francês, set. 1974; numa digressão a Angola convidado pelo MFA, jan. 1975; e no Festival das Canções Políticas na RDA, fev. 1975), sendo o seu reconhecimento internacional também refletido nas várias edições estrangeiras dos seus discos.
Porém, menos de dois meses após o 25 de Abril, em entrevista à revista Flama (7 de junho de 1974), José Afonso afirmava já que a fase de “euforia e entusiasmo” que se vivia teria que passar a uma fase de “organização” sustentada pela emancipação das massas populares. No novo contexto social e político, Afonso considerava assim que o papel de intervenção social dos cantores mantinha-se inalterado. Embora participasse em iniciativas realizadas na órbita de vários partidos de esquerda, o músico salientaria a necessidade de sintonizar a sua atividade musical com as ações dos movimentos populares de base. Desalinhado de modelos partidários, envolve-se intensamente no seio de organizações revolucionárias como a LUAR – Liga de Unidade e Acção Revolucionária (Madeira, 2024), e participa nas Campanhas de Dinamização Cultural do MFA (Correia, 2021).
São estes os terrenos do seu contacto direto com as experiências quotidianas das lutas populares, que seriam fundamentais fontes de inspiração para a criação de novo repertório. Partindo da análise aos percursos do músico durante o período revolucionário, esta comunicação visa explorar os contextos em que José Afonso exerceu a sua atividade musical, focando-me no processo de elaboração de novas canções, muitas das quais alusivas a eventos e acontecimentos concretos, e que seriam maioritariamente gravadas e publicadas entre 1975 e 1976 (num single editado pela LUAR; num LP com Francisco Fanhais, gravado em Itália em solidariedade com os trabalhadores do jornal República e com cooperativas agrícolas portuguesas; e no LP Com as minhas tamanquinhas, publicado pela Orfeu).
Nota biográfica
Hugo Castro é investigador integrado do Instituto de Etnomusicologia, Centro de Estudos em Música e Dança (INET-md) da NOVA FCSH. É licenciado em Antropologia pela Universidade de Coimbra (2006) e completou o mestrado (2012) e o doutoramento (2022) em Ciências Musicais, especialização em Etnomusicologia, na NOVA FCSH, tendo defendido uma tese de doutoramento com o título “A cantiga só é arma quando a luta acompanhar: Canção e política na Revolução dos Cravos (1974-1976)”. Tem desenvolvido investigação sobre vários assuntos do universo da música popular portuguesa, em particular, sobre a relação entre música e política, práticas da canção de protesto, indústrias musicais e música e património. É membro da equipa de investigação do projeto em curso “”É preciso avisar toda a gente": Música e exílio em França durante o regime do Estado Novo (1933-1974)”, coordenação de Manuel Deniz Silva, financiado pela FCT. Atualmente, é curador do acervo de José Mário Branco depositado no Centro de Estudos e Documentação José Mário Branco - Música e Liberdade, na NOVA FCSH. É representante do INET-md no Conselho Executivo do Observatório da Canção de Protesto e membro da Direção da Associação José Afonso.
João Freitas Mendes: “Amor e verdade - aprender e ensinar em José Afonso”
A importância conferida aos graus académicos é provavelmente exagerada. Fernando Pessoa acusou o estado medíocre do escol intelectual no brilhante Caso Mental Português. Também o tiro de partida da voz própria de José Afonso foi sublimado na revolta contra a tradição dos doutores, vista ainda – e depois revista - nas capas dos seus primeiros discos. José Afonso deu, ao longo da vida, conta do maior apreço pelas actividades intelectivas de leitura e escrita, face à sua actividade profissional de cantor. Em 1980, declarou em entrevista: “E como muito poucas vezes canto por gosto - prefiro estudar, agradar-me-ia tirar outro curso”.
As razões das paixões de José Afonso levaram-no à exposição, apesar da sua inclinação de feitio reservado. Mas foi sempre um leitor de si mesmo para si mesmo e um professor privado. De facto, a partir da sua expulsão oficial em 1968 o antigo professor vê sair o grosso da sua obra. Por acordo com a editora, passa a editar um disco por ano: os álbuns Cantares do Andarilho (1968), Contos Velhos Rumos Novos (1969), Traz Outro Amigo Também (1970), Cantigas do Maio (1971), Venham Mais Cinco (1973), Coro dos Tribunais (1974). Quando é readmitido como professor, em Azeitão corria o ano de 1983, e a doença agrava-se até ao fim. As obrigações administrativas de um certo modo funcionário de viver não teriam mudado o suficiente. Na mesma entrevista a José Carlos de Vasconcelos: “Quando estou entregue a mim mesmo, o que faço é ler, praticar actividades físicas, ensinar os meus filhos mas gostaria de ensinar os filhos dos outros.” O que aprendeu José Afonso? O que ensinou José Afonso? O educador acreditava na educação como meio de progresso; e essa forma de educação equivale ao que se diz ser “ensinar a pescar, e não dar o peixe já pescado”. Uma aluna registou no caderno diário o que José Afonso disse na primeira aula no Barreiro, a 4 de Outubro de 1967:
“- Não vos vou dar Organização Política, isto é tudo mentira. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7º ano e poderem entrar na Faculdade. As minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados. Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça.”
Nota biográfica
João Freitas Mendes (n. 1992, Coruche) é doutorando na Vrije Universiteit Brussel (VUB). Foi investigador visitante no Max Planck Institut for Legal History and Legal Theory (MPILHLT) e na University of London (Birkbeck), onde apresentou a sua noção de sociabilidade não-comercial e co-organizou um colóquio sobre Cartas e outros objectos voadores.
Deu aulas de História do Direito e do Pensamento Político na Universidade de Lisboa entre 2020 e 2022. Ali criou, em conjunto com alguns dos seus alunos, um grupo de discussão semanal sem argumentos de autoridade - o Puro Pássaro (https://puropassaro.wixsite.com/website). Publicou “Princípio da Injustiça” (Petrony, 2021), “Antiguidade e Lei da Selva” (https://www.esquerda.net/artigo/antiguidade-e-lei-da-selva/80288, 2022), e “Porquê não sei ainda” (Apenas Livros, 2019). Interessa-se por Kierkegaard e existencialismo, Heidegger e criação, Richard Rorty e socialismo. Recentemente dedica-se à interacção dos seus interesses em filosofia e em literatura portuguesa - em particular na obra de José Rodrigues Miguéis, sobre a qual publicou no último número de A Ideia (n.º100). A propósito da influência existencialista no pensamento do escritor de “Gente da Terceira Classe” fará uma apresentação na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Setembro de 2024.
João Madeira: “Não faltes ao encontro sê constante” – José Afonso e a “unidade popular”
Encerrado o período revolucionário, derrotada a utopia do “poder popular”, José Afonso vive inconformado e inquieto a “normalização” democrática. O apoio entusiástico à candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, a desilusão e a frustração do MUP; a FAPIR e a Era Nova, experiências de organização dos cantores e outros artistas da esquerda revolucionária; as múltiplas solidariedades, dentro e fora do país; o desencanto rápido com a FUP e o apelo ao voto na APU; Otelo de novo, ainda assim; pontuaram um tempo que correu veloz, trazendo, avassaladoras, a recuperação capitalista e as maiorias absolutas de direita.
Até que ponto se reflecte esse trajecto nos discos que edita entre 1976 e 1981? E que entusiasmos, sobressaltos e desilusões viveu nesses anos? O seu envolvimento nos ensaios e tentativas de unidade popular e na valorização das conquistas de Abril, o apoio à organização popular autónoma e à democracia de base ou a pulsão anti-imperialista foram insistentes expressões de afirmação de um ideário, formas de resistência activa, modos de olhar passado e presente sem abdicar no essencial de valores e princípios e, sobretudo, disponibilidade para intervir, intervir sempre.
Nota biográfica
Investigador do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Membro da Direcção da Associação José Afonso, que representa no Conselho Executivo do Observatório da Canção de Protesto. Autor, entre outras obras, de “Os Engenheiros de Almas. O Partido Comunista e os Intelectuais” (Estampa, 1996), “História do PCP” (Tinta da China, 2013), “1937: O atentado a Salazar e a Frente Popular em Portugal” (Esfera dos Livros, 2013), “Carlos Aboim Inglês. Um intelectual comunista entre acção e pensamento” (Assembleia da República, 2020), Coordenador e coautor de “Vítimas de Salazar” (Esfera dos Livros, 2007), Introdução e Organização de “Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão” (Ela por Ela/Abrente Editora, 2015). Artigos publicados mais recentes: “La «groupusculisation» des «marxistes-léninistes» portugais dans l’émigration politique en France, Riveneuve Continent, Nº 8 nouvelle série/nº 22, pp 124-143, 2016; Grândola Vila Morena. Uses and meanings of a song (em coautoria com Hugo Castro e Ricardo Andrade , Zapruder World/Music and social conflicts, vol. 7, 2021) WordPress › Error (zapruderworld.org), “José Afonso, o poder popular e a LUAR (Cadernos do Arquivo Municipal, 21, CML, 2024) View of José Afonso, the Popular Power and LUAR (cm-lisboa.pt).
Jorge Martins: “Quando se canta a si, o que canta o Zeca?"
O Zeca foi um revolucionário. Um revolucionário ideológico na sua vida e um revolucionário cultural na sua arte. Sem estes pressupostos, não podemos falar do Zeca. Mas o Zeca foi mais do que isso. Seria redutor não o reconhecer e seria contraproducente para a divulgação da sua obra junto das novas gerações que não (con)viveram com ele e que não tiveram o privilégio de resistir à sufocante ditadura (também) cantando as suas canções. Foi um militante pela liberdade, foi um ativista cívico, foi um poeta, foi um indefetível utopista e foi acima de tudo um humanista, no mais nobre sentido do termo. Além dos outros poetas que cantou, cantou-se a si próprio e, quem conhece a sua obra discográfica, sabe que também interpretou um assinalável número de temas populares.
Mas, quando se canta a si, o que canta o Zeca? Ou seja: que palavras escolheu o Zeca para os seus próprios poemas que cantou nos seus discos? Fizemos um exercício de análise dos vocábulos mais frequentes nas letras que ele escreveu para interpretar na sua discografia essencial, cujos resultados foram publicados no livro As Palavras-Chave das Canções de José Afonso (2022). Surpresas? Talvez algumas… Sobretudo para aqueles que o tratam redutoramente “apenas” como revolucionário e não consegue ver mais além. Ele próprio tinha consciência (e assumiu-o publicamente) de que não cabia em nenhum rótulo ideológico (era o seu próprio “comité central”).
O citado estudo procurou encontrar as palavras-chave que José Afonso usou nas suas letras: substantivos (comuns ou próprios), adjetivos, verbos. Embora tenha usado muitas das palavras em sentido irónico, sarcástico, metafórico, alegórico, isso não constituiu um obstáculo à sua contabilização. Identificámos 166 canções, dentre os principais discos (Singles, EPs e LPs) que gravou: 95 de letra sua, 34 de outros autores, 25 populares / tradicionais e 12 adaptadas ou de parceria entre as três origens anteriores.
Se algumas das palavras mais frequentes da poesia do Zeca por ele interpretada não constituem surpresa para quem conhece a sua obra, outras revelaram-se insondáveis, pela sua inesperável pouca utilização ou, pelo contrário, pela revelação da importante frequência com que aparece nas suas canções. Perscrutámos o seu vocabulário desde a primeira palavra da primeira canção com letra da sua autoria à última palavra da última canção com letra da sua autoria.
Nota biográfica
Jorge Martins é doutorado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Autor de obras de ficção, de história local e de manuais escolares em coautoria, tem-se dedicado nos últimos anos aos estudos judaicos e inquisitoriais. Sobre a temática diretamente relacionada com a obra de José Afonso, publicou o livro “As Palavras-Chave das Canções de José Afonso” (2022) e foi realizador, entre 1986 e 1988, de um programa de Música Popular Portuguesa numa rádio local – a Rádio Imprevisto, da Pontinha –, cujo genérico era um excerto da “Utopia” do Zeca e para o qual entrevistou grande parte dos cantores de intervenção. Sobre a Ditadura e o 25 de Abril, temática de algum modo associada à obra do Zeca, publicou sete opúsculos sobre toponímia local, intitulados “O 25 de Abril nas Ruas do Concelho de Odivelas” (2000); “A Ilha que não queria o 25 de Abril” (1999), ficção em torno da ação de Salgueiro Maia; “Vozes de Abril na Descolonização”, em coautoria (2014); “Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas” (2024); artigos relacionados com o 25 de Abril e o Posto de Comando do MFA, na revista “Reflexos”, da Escola Secundária Braamcamp Freire – Pontinha (1995); e foi autor dos conteúdos do Núcleo Museológico do Posto de Comando do MFA (2001) e da petição que resultaria na sua classificação como monumento nacional (2015).
Matilde Dias: Pensar a tradição: Paralelismos entre O Pão (1959) de Manoel de Oliveira e Cantares do Andarilho (1968) de José Afonso
Pensar a condição humana pressupõe o diálogo com a tradição. Enquanto uma das maiores obras coletivas da humanidade, a missão de transmitir, rejeitar, transformar e criar heranças culturais é levada a cabo por diversas mãos. Ao longo da história, o papel da tradição esteve, no entanto, longe de semear consensos, ora servindo de entrave ao progresso, ora de símbolo revolucionário. Durante a ditadura salazarista, o mais longo regime autoritário da Europa Ocidental do século XX, vários artistas tiraram partido desta ambiguidade, carregando mensagens subversivas em objetos, à primeira vista, apenas favoráveis à identidade portuguesa. É o caso de duas obras-gémeas, separadas por quase 10 anos e concebidas totalmente em separado – O Pão (1959) de Manoel de Oliveira e Cantares do Andarilho (1968) de José Afonso.
Desde os tempos de Douro Faina Fluvial (1931), a lente de Manoel de Oliveira já demonstrava um certo apetite pelos costumes locais. Olhando para o final da década de 50, o cineasta descreve-se como particularmente “sedento de cinema” e, por sinal, a fome de cartografar o mundo levou-o a sentar-se à mesa com a tradição. Uma encomenda da antiga Federação Nacional de Industriais de Moagem (FNIM) serviu de ponto de partida para saudar e desafiar a bagagem cultural de um povo, numa lógica próxima do ‘somos o que comemos’. Provando que a identidade mora num simples amassar de água e farinha, lançaram-se as sementes para filmar O Pão (1959).
Disfarçando intenções subversivas, Manoel de Oliveira completou o pão nosso de cada dia, enquanto José Afonso se preparava para cantar a forma como “rabanadas, pão e vinho novo / matava a fome à pobreza”. Nos tempos em que Grândola, Vila Morena ainda não movia multidões, o cantautor tomava as rédeas da nova música popular portuguesa, misturando ritmos tradicionais com sonoridades contemporâneas. O disco Cantares do Andarilho (1968) surgiu na crista deste movimento, mostrando um artista tão crítico quanto zeloso do legado nacional. Hábil em ocultar narrativas revolucionárias, José Afonso invocava não só mitos locais e festividades arcaicas, mas também o terror da atualidade, apenas ao alcance de quem se atrevia a refletir - “vejam bem / que não há só gaivotas em terra / quando um homem se põe a pensar”.
De facto, os trabalhos visados destacam-se pela sua capacidade análoga de soprar o pó e revelar uma impressionante abertura do tradicional à interpretação, estabelecendo pontos de contacto muito além da âncora temática do pão. Do céu à terra, da libertação à opressão, o cinema e a música oferecem coordenadas complementares para localizar um país no espaço e no tempo. Ao realizar a proeza de invocar o passado, inseri-lo no presente e projetar um futuro em liberdade, justifica-se a pertinência da análise interartes entre O Pão e Cantares do Andarilho.
Nota biográfica
Natural de Lisboa, Matilde Dias é mestranda em Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigadora na produtora de cinema Cabiria Productions. Passou por festivais de cinema como o CINENOVA - ao integrar o comité de seleção de curtas-metragens nacionais e internacionais - e o MOTELX - como programadora da secção infantil ‘Lobo Mau’. Nos tempos livres, pensa sobre arte através da escrita em plataformas como o Público – P3, participa em projetos de investigação na área do cinema e dá os seus pareceres sobre a sétima arte, através do coletivo Bons Malandros do Cinema Fernando Lopes. O amor pela música e pela liberdade levou-a a integrar a equipa de comunicação da Associação José Afonso, em 2023.
Mauricio Salles Vasconcellos: “Política do Ritmo/Poeticidade do Mundo”
Desde seu surgimento, norteado por referências basilares do canto e de uma mitopóetica enraizada no território português, José Afonso faz do universo musical um intensificado campo de congregações criadoras. Extensiva a uma elaborada dimensão escrita da palavra simultaneamente à desbravação da oralidade em diferentes gamas de remissões e recursos, sua produção redesenha a noção de História, tão empenhada se encontra nas marcações de uma época – quatro últimas décadas do Século XX – em sua concretude mais visível quanto está imbuída de uma redefinição do lugar da música no tempo. Possível é tal pontuação se desdobrar como música do tempo. Uma política do ritmo se evidencia na redefinição dos atributos e das expansões do cantar e do cantor (poeta da musicalidade e da territorialidade), através de um expandido senso de pertença, direcionado ao que concebe o filósofo Kostas Axelos como poeticidade do mundo.
Nota biográfica
Professor-Senior da Universidade de São Paulo. Atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP), onde coordena a linha de pesquisa “Laboratórios de Criação – Escrita de Literatura e Teoria”. Escritor, compositor e performer. Concebeu o projeto Livro – Telefone – Rua – Ópera Estenofônica, em parceria com o músico erudito Marcus Siqueira. Tendo como base The Telephone Book, da filósofa Avital Ronell, o projeto musical foi publicado em livro no ano de 2022 (São Paulo: Editora Lumme). Autor de narrativas, poemas, peças e ensaios. Seus livros mais recentes são: Mantra Muzak (2024), volume que apresenta 10 textos teatrais de sua autoria; Últimas décadas nos cinemas – Livro-de-Bolsa (2024); Bebete Bezos (2023); Seriado (2021), romances. Nove livros de poesia estão reunidos em Vocal (2022). Na área ensaística: Mapas Caminhantes – Poesia do Tempo e da Terra (2023) e Em Tempo/Extremo Poema (José Emílio-Nelson), de 2022, ambos publicados por Edições Esgotadas (Lisboa).
Ricardo Andrade: “Para onde é que eu vou levar o meu «pai»?” - José Afonso, José Mário Branco e a gravação de Cantigas do Maio
Gravado entre outubro e novembro de 1971, no Strawberry Studio do Château d’Hérouville, situado nos arredores de Paris, o álbum Cantigas do Maio, publicado pela editora Orfeu no mesmo ano, surge como resultado da conjugação entre a crescente exigência de José Afonso quanto aos processos de gravação de discos e a dimensão inovadora do músico José Mário Branco, escolhido por José Afonso para diretor musical. A responsabilidade de Branco pelos arranjos e pela produção de Cantigas do Maio denotou abordagens de conceção fonográfica até então inéditas nos discos de Afonso. Exilado em Paris desde 1963, José Mário Branco vinha desenvolvendo, desde 1969, atividade enquanto responsável pela direção musical de fonogramas, quer dos seus discos, quer de discos de outros intérpretes. Meses antes de Cantigas do Maio e no mesmo estúdio, tinha gravado e produzido o seu primeiro LP Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, tendo também sido conselheiro musical do primeiro LP de Sérgio Godinho, Os Sobreviventes, discos que figurariam igualmente no topo das escolhas dos críticos em Portugal na viragem de 1971 para 1972.
Estes discos tiveram substancial impacto mediático e constituíram marcos no que a imprensa da época qualificou como “renovação” da “música popular portuguesa”. Esta “renovação” foi, entre outros aspetos, caracterizada por um recurso mais intenso às potencialidades da gravação multipista e uma maior aproximação a emergentes práticas de produção fonográfica no âmbito da música popular anglo-americana, aspetos indissociáveis do facto destes discos terem sido todos gravados num estúdio vocacionado para a gravação de música rock, e do perfil musical do principal responsável pela sua produção, José Mário Branco. Considerando a importância destes discos e o percurso dos seus principais intervenientes, esta comunicação aborda os processos que configuraram as características de Cantigas do Maio e que o constituíram enquanto momento pivot de transformação da prática fonográfica de José Afonso e, por extensão, das práticas de gravação dos músicos identificados com o universo da “canção de protesto” em Portugal.
Nota biográfica
Ricardo Andrade é doutorado em Etnomusicologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e investigador integrado do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-MD). Licenciou-se em Ciências Musicais na mesma instituição universitária, onde realizou e defendeu uma dissertação de mestrado sobre as práticas do rock sinfónico / progressivo em Portugal na década de 1970, assim como uma dissertação de doutoramento sobre o “boom” do rock em Portugal de inícios da década de 1980. Em colaboração com Hugo Castro, tem desenvolvido investigação sobre diversos assuntos relacionados com o universo da “canção de protesto” em Portugal, encontrando-se de momento a elaborar um livro sobre a actividade musical de José Mário Branco enquanto compositor e produtor. É membro da direcção da Associação Lopes-Graça, da direcção da Associação José Afonso, da comissão executiva do Observatório da Canção de Protesto e curador do Centro de Estudos e Documentação José Mário Branco - Música e Liberdade. Integra também a equipa do projecto de investigação EXIMUS – “É preciso avisar toda a gente: música e exílio em França durante o regime do Estado Novo (1933-1974)”, financiado pela Fundação para a Ciência a Tecnologia.
Sara Maia: Traz um amigo também - José Afonso entre Paris e Galiza
Partindo da minha dissertação de mestrado A canção está na rua. Transnacionalidade da canção de intervenção entre Portugal, Espanha e França (1968-1975), gostaria de focar esta comunicação num eixo proposto pela organização: a presença e repercussão internacional de José Afonso. Assim, irei concentrar-me na presença de José Afonso em dois locais essenciais durante o período referido: Paris e Galiza. Esta relação não se verifica apenas através de influências remotas ou mediadas, mas também, e sobretudo, através da participação efetiva de José Afonso em determinados eventos ocorridos ao longo do período abordado, nomeadamente: gravações de discos e concertos conjuntos nestes locais, conforme o que foi discutido na minha dissertação.
Explorarei alguns destes entrelaçamentos culturais, que foram frequentemente acompanhados por um espírito de amizade e companheirismo. Pretendo assim abordar, particularmente, dois eventos de extrema relevância neste contexto:
– A gravação do álbum Cantigas do Maio (1971) em Paris, no Château d’Hérouville, em colaboração com artistas franceses, destacando a gravação de “Senhor Arcanjo”, principalmente pela característica de ter na sua gravação um pequeno diálogo franco-português – uma canção antes da canção (Fanhais, 2023) – que coloca o ouvinte num espaço transnacional de escuta.
– A estreia ao vivo de “Grândola, Vila Morena” (1972) em Santiago de Compostela, num concerto partilhado com o seu companheiro Benedito García Villar. O sentimento de união verificado na Galiza é acompanhado ainda pelo entendimento da letra expressa em português, mas igualmente entendida em galego. Deste modo, pretendo ainda abordar o impacto que teve esta canção no imaginário coletivo galego.
Com estes dois eventos, almejo demonstrar como a presença de José Afonso em Paris e na Galiza durante o período analisado não apenas evidencia a sua projeção internacional, mas também ilustra o papel que a sua música desempenhou na promoção da solidariedade e da consciência social além-fronteiras, através do seu contínuo espírito de amizade entre todos os que participavam nas suas músicas.
Nota biográfica
Nascida em 2000, Sara Maia começou os seus estudos musicais com seis anos. Terminou, em 2020, o curso de canto no Instituto Gregoriano de Lisboa. Finalizou em 2021 a Licenciatura em Ciências Musicais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e terminou em 2024 o mestrado em Ciências Musicais, vertente Musicologia Histórica, com uma dissertação dedicada à transnacionalidade da canção de intervenção entre 1968 e 1975.
Sempre teve um enorme gosto pelas diferentes artes, tendo realizado na sua infância e adolescência um percurso, em paralelo com a música, pelo teatro e pela dança. Participou também, ao longo de 9 anos, no Coro Infantojuvenil da Universidade de Lisboa, bem como no Coro de Câmara do Instituto Gregoriano. Interessa-se também pelo ensino musical das crianças, tendo feito já sessões de música para bebés em Almada (2018, 2020, 2021). Neste mesmo âmbito, lecionou na Academia do Som (2021-2022), a crianças com idades entre os 4 e os 6 anos e, na Academia de Música de Almada (2021-2023). Encontra-se, simultaneamente, a terminar a licenciatura em canto, na Escola Superior de Música de Lisboa, tentando conjugar a sua atividade como intérprete e musicóloga. É membro fundador do grupo de música antiga “Altos do Bairro” e do “Ruído-Mudo”, uma plataforma digital que pensa e escreve sobre música. É atualmente membro do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e de Estética Musical) e colabora com o MIC – Centro de Investigação e Informação da Música Portuguesa.
Simão Mota: José Afonso de capa e batina
Se por um lado as influências da música da Beira Baixa têm um grande impacto na matriz sonora e estética de toda a criação de José Afonso, por outro, é sobretudo no âmbito da Canção de Coimbra (também ela alicerçada nestas influências), que se dá toda a construção de um corpus estilístico que há de orientar o percurso musical de José Afonso.
Integrado numa segunda geração de ouro, em que pontuam figuras como António Portugal, António Brojo, Luís Goes, Fernando Rolim, Fernando Machado Soares; José Afonso absorve, na década de 1950, os ensinamentos e as pegadas das principais referências musicais dos anos 20 da Canção de Coimbra. Toda a sua formação e o início do seu percurso e a sua identidade são construídos no ambiente musical da Canção de Coimbra.
De figuras como António Menano, Artur Paredes, Afonso de Sousa, Edmundo de Bettencourt, Paradela de Oliveira e Armando Goes, que na década de 20 do século XX, encabeçam um movimento de redefinição do género, das linhas orientadoras e que instauram como referência para todas as gerações seguintes, José Afonso toma como exemplo a postura renovadora
Para além da vanguarda intelectual de todo um ambiente conspirativo e de movimentos de esquerda que se vivia na cidade, José Afonso é também influenciado pelos movimentos de dinamização cultural e musical (que levam a um ressurgimento da atividade musical em Coimbra nas décadas de 1940 e 1950, depois de um adormecimento de cerca de 20 anos) e é profundamente marcado pela dinâmica e pela orgânica dos grupos e da música que se compunha e executava nesse tempo em Coimbra.
Note-se que, para além da oportunidade estratégica e comercial que o último álbum representa para a editora Orfeu, de Arnaldo Trindade, há como que um fechar de ciclo com a gravação do Disco "De Capa e Batina. Não por acaso José Afonso termina a sua carreira discográfica desta forma e dedica o álbum a Edmundo Bettencourt.
O seu impulso criativo e a rutura com a ordem pré-estabelecida, levam-no a quebrar convenções e arquétipos que estavam instaurados na música de Coimbra. A redefinição estilística e a criatividade surgem com a viola, as introduções e a música de Rui Pato (integrado numa lógica de aprendizagem em grupos como o "Portugal dos Pequenitos" - grupo de jovens músicos formados e orientados por António Portugal, de que faziam parte Francisco Martins e João Farinha). Mas surgem também pelo ímpeto criador que o levam a romper com uma lógica , assumindo-se sempre, no entanto, como herdeiro da música popular, de transmissão e transportando o seu legado para o futuro, transformando-o.
Todo o percurso "iniciático" de José Afonso é trilhado em tertúlias, serenatas, ensaios, a receber os ensinamentos da geração anterior, discutindo, refletindo e propondo ideias novas e também espelhando a inspiração e a postura inovadora que tinham recebido da geração da década de 1920. Ao mesmo tempo e em contraposição, é precisamente este contexto que o leva a afirmar-se enquanto autor, compositor e a assumir o seu percurso autónomo, mesmo que nunca desligado desta herança.
Reflitamos, por isso, sobre a influência da Canção de Coimbra a vida, na obra e no percurso de José Afonso, enquanto compositor, intérprete e um dos nomes mais importantes da música portuguesa do séc. XX.
Nota biográfica
Nascido em Lisboa em 1998, é licenciado em Jornalismo e Comunicação e Mestre em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Em outubro de 2023 defendeu a sua dissertação sobre as práticas colaborativas de Carlos Paredes, em que refletia sobre a postura, dinâmica e tensões na vertente colaborativa do percurso musical de Carlos Paredes. Dedica a sua atividade de investigação ao trabalho de recolha, estudo e pesquisa sobre diversos ramos da Canção de Coimbra. Para além de investigador, tem também uma intensa atividade musical enquanto guitarrista, em diversos grupos. Integra o Quarteto de Coimbra, que para além de um aprofundado trabalho de estudo e execução de repertório da Canção de Coimbra. Além do trabalho em torno da herança musical e cultural da cidade, o Quarteto tem apresentado temas originais tentando contribuir para esse legado.