João Lisboa sobre a fotobiografia de José Afonso, hoje, no Expresso
Mesmo no final do capítulo introdutório desta fotobiografia de José Afonso, salta uma interrogação: “Mas será que hoje a sua obra é conhecida?” E, pela voz de Júlio Pereira, vem a resposta/lamento: ele ainda será apenas encarado “como uma figura muito polémica e ligada a actividades políticas”, o que terá tido como consequência que, “por isso, muita gente ainda não ouviu o seu trabalho”. Permitamo-nos duvidar: se é verdade que, para o bem e para o mal, José Afonso ficará sempre como o autor de ‘Grândola’, que, ainda durante muitos anos, continuaremos, anualmente, a escutar em todas as comemorações do 25 de Abril, isso não é destino muito diferente dos de – em planos e circunstâncias diferentes – Jacques Brel como ‘o autor de ‘Ne Me Quitte Pas”, de Serge Gainsbourg como ‘o tipo que cantava ‘Je T’Aime Moi Non Plus’ com Jane Birkin’ ou de Woody Guthrie na condição de criador de ‘This Land Is Your Land’. Por outras palavras, haverá, inevitavelmente, quem nunca passará desse alpendre, mas isso não impede que muitos outros possam ir mais longe e mais fundo. O texto de Irene Pimentel vem contribuir de forma importante para que virtualmente tudo o que foi dito e escrito acerca de Afonso (e por ele próprio) fique, agora, reunido e disponível; o que, se constitui uma imensa riqueza biográfica, também perturba por vezes a fluência da leitura, de tal modo obriga a uma esgotante prova de obstáculos por entre sucessivas citações. Mas que acaba por se ultrapassar com o prazer que decorre de depararmos com nacos de prosa afonsina, como aquele em que o músico, preparando-se para regressar do Algarve a Coimbra, anseia por que alguém lhe pague “de vez em quando um almoço” e espuma contra a sina dos “monstros sagrados tristemente burocratizados em profissões indignas e ignorados por todos os brutamontes deste ignóbil e pírrico music-hall português”. Ele a quem, como recorda o irmão João, tanto seduzia “o hábito do jogo e dos disparates (…), improvisações de discursos macarrónicos, frases feitas, coisas sem nexo e surrealizantes”.
João Lisboa