Zeca Afonso: O que dizem dele os jovens.
A direita não vai à bola com ele. O Portugal de lés a lés. Orgias de ritmo. O nosso pai. Ponte entre Portugal e África. Não era grande poeta. Assim falam os que eram adolescentes quando Zeca morreu. Por João Bonifácio
a Um homem começa um dia a executar o que por menoridade semântica chamamos “obra”. Mas é possível que esse homem nunca tenha a certeza de escapar ao julgamento do tempo: tudo tem um certo intervalo em que o seu reinado se edifica. O que lhe farão os que vêm depois? É essa a pergunta que fazemos hoje que passam 20 anos sobre a morte de Zeca Afonso, a quem as homenagens oficiais consagram o epíteto de “maior génio da música portuguesa”. Perguntámos aos que estavam a tornar-se homens quando Zeca morreu e aos que estavam a nascer quando Zeca nos deixou. A ideia é saber como Zeca sobrevive e é recebido pelos filhos da liberdade.”A influência que ele tem nos músicos é total. Só isso lhe garante uma certa posteridade.” A frase é do poeta Pedro Mexia, 34 anos alinhados à direita. A auscultação entre músicos parece dar-lhe razão. Victor Afonso, 34 anos, que edita discos de electrónica enquanto Kubik, chama-lhe “espírito criativo e irrequieto”. Afonso estudou Zeca desde cedo, primeiro “aos dez anos nas aulas de guitarra clássica”, depois “no curso de educação musical, nas cadeiras de etnografia, não porque o Zeca fizesse música verdadeiramente etnográfica mas porque partia dela para lhe atribuir elementos de uma grande modernidade estética”.
Esse lado etnográfico parece ser particularmente reconhecido, e mesmo entre poetas: Mexia realça o “trabalho de campo [de recolhas] de Zeca, até porque a cultura popular que vinha do Estado Novo era muito artificial”. E o também poeta José Miguel Silva, 38 anos alinhados à esquerda, destaca “o papel muito importante na revitalização da música popular portuguesa”, chamando a atenção “para uma tradição que estava um bocado esquecida”.
Miguel Almeida, 33 anos, fanático da obra de Zeca, não tem dúvidas em reafirmar o lado camaleónico do compositor: “Há ali muita Beira (a de cá e a de Moçambique), África a rodos, Portugal de lés a lés e um sentido musical enorme, sem medo de experimentar. Tens no Zeca desde canções despidas, completamente espectrais, fantasmagóricas, a orgias de ritmo.” Mas, e faz questão de vincar isto, “ele não era uma ilha isolada, era uma parte do Portugal em que vivia, e por isso hoje faz-me alguma confusão esta tentativa de separar o músico do político, de o branquear. Não havia Zeca sem luta contra o fascismo, sem revolução, sem o afirmar destemido de ideais que hoje nos podem parecer deslocados e anacrónicos.”
Valete, o rapper
Zeca, para todos os efeitos, é um símbolo político, “essa figura física capaz de responder aos acontecimentos do seu tempo” (José Miguel Silva). Para um rapper como Valete, vindo dos subúrbios de Lisboa, e empenhado em olhar a realidade social, possuidor de toda a discografia de Zeca a partir dos anos 70, isso é muito importante: “A minha escola, progressista e de intervenção, é uma continuação da escola dele e do Zé Mário, que leva para a música, mais que o entretenimento, o intervir e o consciencializar. Se o Zeca não existisse nós também não existíamos. São os nossos pais.”
Mas nem toda a gente o descobriu assim. Quando Cristina Branco, 34 anos, fadista (ou nem por isso) descobriu “o lado empenhado dele”, na altura “em que se desperta para a consciência política”, isto é, na adolescência, essa revelação “não foi um choque”. Por várias razões, mas uma acima de todas: “Na casa dos meus pais sempre se ouviu o Zeca, em particular as canções próprias para crianças, as canções de embalar.” A fadista cresceu em Almeirim numa família de esquerda.
Mudemos de agulha para alguém dois anos mais velho, “ferozmente neutro”, e que cresceu em Coimbra: o cantautor JP Simões. “A princípio inspirou-me um certo aborrecimento – e só depois fiquei fã.” Esse depois deu-se na altura do liceu, em que o “ouvia imenso”. Mas lá por meio dos anos 80, as coisas, entre os adolescentes, estavam muito barricadas: JP acha que havia “um grupo que cantava o Zeca Afonso”, um género de pessoas “que se vestia como amante da natureza”. Zeca era, conclui, “refém de um contexto partidário e estético”. Afonso tem a mesma impressão: “Nos anos 80 toda essa gente era vista como “cantores de esquerda”. Havia um preconceito, que não sei se haverá ainda hoje.” Simões: “As coisas estavam encaixotadas nos seus formalismos e como as posições políticas vêm de famílias, é provável que os de direita não o ouvissem – mas ele já ultrapassou esse bicórnio da política nacional.” Cristina Branco: “Houve quase um complexo em relação a tudo isso e uma necessidade de deixar passar sem explicar o que era o Zeca.”
E hoje? Mexia: “As pessoas da direita ideológica não vão à bola com ele.” Valete acha que os amigos não ouvem Zeca: “Vivo nos subúrbios, tenho amigos de segunda geração de imigrantes e tenho amigos brancos da minha idade, ouviram falar, mas poucos têm contacto com a discografia, tem muito pouca presença na juventude.”
O músico Kalaf, que reconhece que as pessoas que lhe estão próximas “não o ouvem de todo”, acredita que o esquecimento de Zeca se deve a “ter sido comunista, e saiu de moda ser comunista”. Kalaf, poeta e cantor que nasceu em Angola, chegou a Zeca “pela versão que os Tubarões fizeram do Venham mais cinco, com o Ildo Lobo a cantar. Tinha talvez uns 17 anos. Devia estar a chegar a Portugal.” “Ele fazia a ponte de Portugal para África, não deixando de ser músico português”, explica Kalaf. Sentiu-se “atraído pela poesia dele, pelos textos”.
Palavras: a Mexia interessa-lhe “a ligação com as cantigas de amigo, letras que podiam ser poemas medievais – a maneira como ele pegava naquilo tinha imensa força, e deu dignidade à cultura popular portuguesa”. Mais uma vez, José Miguel Silva tem opiniões similares: Zeca “não será um grande poeta”, mas “as letras dele têm uma grande força emotiva”.
Preconceitos
Simões vê nele um homem cuja qualidade principal é “o lirismo, no sentido mais amplo, no sentido de cantar o mundo com as suas cambiantes”. Afonso chama-lhe “cronista acutilante” e admira “a forma como ele fazia fintas à censura.” Cristina Branco também não sobrevaloriza a questão política: “Vejo-o como um observador da vida, uma pessoa extremamente simples.” Bernardo Soares, engenheiro, 33 anos, também fanático de Zeca, encontra na sua obra “uma forma de se ser português, uma condição que ali está, decantada, sintetizada, omnipresente, mas diluída numa outra condição eventualmente superior: a condição humana… E não se destrinça onde começa o Homem e acaba o Português ou vice-versa, com as contradições todas de uma e de outra coisa”.
Camané, fadista, 40 anos (também homem das esquerdas) acha que “houve algumas pessoas que tentaram ignorar a dimensão artística do Zeca por questões políticas”, o que não lhe parece correcto, porque “a dimensão artística é superior”. Mas o que afastava Mexia da música de Zeca era uma questão quase geracional: “Eu tinha um preconceito com a música portuguesa.” Curioso que também José Mário Silva tenha uma experiência similar à de Mexia: “Nessa altura, em que ele morreu, estava muito voltado para a música anglo-saxónica, ouvi-o depois.” Esse problema nunca existiu para Camané: lembra-se “perfeitamente” da morte de Zeca, “de falarem de todas as dificuldades que passou, da doença que ele teve, do último concerto no Coliseu; durante muito tempo falou-se muito desse concerto, foi muito emocionante e ele já não tocava muito tempo ao vivo, foi uma espécie de despedida”.
Mas não é preciso viver os acontecimentos para senti-los da mesma forma: Mariana Pereira tem 22 anos e está a acabar Economia no ISEG (Lisboa). Quando ouve o concerto do Coliseu ainda lhe vêm lágrimas aos olhos: “A minha mãe não quis ir porque sabia que ele ia falecer dentro de pouco tempo – tudo isso me transporta àquele tempo que não vivi.” Para ela Zeca “ainda é muito o 25 do Abril, as memórias que ouvia contar”. Lembra-se de ouvir o avô a cantá-lo. Mariana não conhece muitas pessoas com quem se passasse o mesmo. Diz que nunca falou com pessoas da sua geração sobre Zeca. “Senti-me muito diferente das outras pessoas da minha idade, talvez por esse enquadramento familiar.”
A confiar no testemunho dela, fará sentido a pergunta de Mexia: “Como é que Zeca irá sobreviver ao ocaso das ideias e da política?” Voltando ao fã Bernardo Soares e à sua ideia de portugalidade: “Quase 900 anos depois ainda cá andamos às cabeçadas a isto tudo. As canções do Zeca apontam outro caminho.”
Entre as pessoas que ouvimos, Cantigas do Maio é o disco mais destacado. Depois vêm Eu Vou Ser Como A Toupeira e Venham Mais Cinco e Traz Outro Amigo Também. No que toca a canções, as opiniões são mais variadas, mas duas ficam aqui registadas; entre uma e outra perfaz-se um arco que une morte e liberdade.
O engenheiro Bernardo Soares, fã de Zeca, relembra um tema do último disco de Zeca, Galinhas do mato: “É difícil conter a comoção quando, em Alegria Da Criação, Janita Salomé, substituindo o já debilitado Zeca, canta “de nada me arrependo/ só a vida/ me ensinou a cantar/ esta cantiga”, irrompendo de seguida as vozes do coro Cramol com toda a sua telúrica pujança. E a cantiga é uma e só uma, a de um voo picado sobre a condição humana.” Da morte para a liberdade, o testemunho de Victor Afonso, músico: “Houve uma música que me tocou particularmente, que é, passe o cliché, o Grândola – não é só a questão da referência política. Como estudante de música, se formos rigorosos, é uma composição que sintetiza toda a arte do Zeca: em termos de composição, arranjos, linha melódica, modulações, e repetitividade rítmica, é tão complexa e mesmo assim transporta uma tão grande carga emocional. É perfeita.”
Além de uma dupla compilação que reúne os 30 melhores temas de José Afonso, uma série de discos de homenagem estão a ser preparados. Cristina Branco vai transpor para disco o espectáculo no Teatro São Luiz. A formação traz arranjos que imprimem um tom quase blues (Outubro). O italiano David Zaccaria recria a obra de Zeca num disco (Abril), com Dulce Pontes e Uxía. A orquestra Drumming, com arranjos de Pinho Vargas, Laginha e Sassetti dará um espectáculo (25 de Abril) na Casa da Música. Se resultar, há disco. Os brasileiros Couple Coffee vão editar C”as tamanquinhas do Zeca (Março). Os Frei Fado d”El Rei lançam (Abril) um disco de versões, Senhor poeta.
Há mais de vinte homenagens a Zeca entre hoje e amanhã (lista completa na página da Associação José Afonso, www.aja.pt, ou em www.vejambem.blogspot.com). Destacamos três: hoje, no Entroncamento, no Cine-Teatro São João (21h30), João Afonso, o sobrinho, interpreta a obra do tio. Amanhã, em Coimbra, há (21h00) uma tertúlia na livraria Almedina Estádio, com músicos que o acompanharam (Rui Pato e Carlos Correia), músicos da época (Manuel Freire) e amigos (José Mesquita e Abílio Hernandez). No mesmo dia, em Guimarães, no Centro Vila Flor, concerto com José Mário Branco, João Afonso e Amélia Muge.