“Um cheirinho de alecrim”
Um cheirinho de alecrim
Chico Buarque venceu, este ano, o mais importante galardão da língua portuguesa, o Prémio Camões. Nunca a atribuição de um prémio, dado a um estrangeiro, tinha provocado uma tal onda de entusiasmo e comoção. A Associação José Afonso não poderia deixar de se juntar a este regozijo.
Embora Chico Buarque apenas tivesse tido um encontro quase de raspão com Zeca Afonso, não só conheciam a obra um do outro, mas também a sua postura cívica e política, assim como alguns aspectos concretos das suas vidas, se assemelham. Na resistência às ditaduras dos respectivos países, na perseguição que sofreram, na censura e proibição de edição de alguns títulos das suas obras, na dimensão humana e artística de cada um deles.
O júri do prémio justificou a escolha pela “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”.
É verdade! Chico Buarque faz parte da trilha sonora da vida de grande parte de nós. Desde o encantamento das melodias de conteúdo aparentemente ingénuo em João e Maria, até ao retrato popular da gente que vê na passagem da banda a alegria que falta ao seu quotidiano duro e desencantado “ a minha gente sofrida, despediu-se da dor pra ver a banda passar cantando coisas de amor” . E quem nunca, enamorado/a, sonhou com a Valsinha e a cândida história que assim conta: “ cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar”? Quem não se indignou ao escutar Construção e não tomou consciência da desumanidade do capital face a um proletariado explorado, desprezado, dispensável, materializado no operário da construção civil que “agonizou no meio do passeio público” e “Morreu na contra- mão, atrapalhando o tráfego “ ?
Quantas mulheres não se reviram na denúncia irónica da condição feminina de Mulheres de Atenas? Quantos não se indignaram, não ergueram os punhos, não se esperançaram ao ouvir Vai passar, ou ainda Apesar de você? Quem poderá esquecer o apelo lancinante de Cálice?
Chico Buarque, sempre atento à realidade do seu próprio pais e intervindo política e socialmente, sofreu as consequências do seu posicionamento à esquerda, tendo de exilar-se para fugir à prisão no período da ditadura militar brasileira.
Chico Buarque foi também o “amigo maior” do povo português, cujo pensamento galgou o oceano e se rejubilou com a revolução do 25 de Abril a que dedica Tanto mar. Apesar da escuridão política em que o Brasil estava mergulhado, apesar do momento penoso, o seu abraço é fraterno e caloroso, “Eu queria estar na festa, pá/ com a tua gente/ E colher pessoalmente/ Uma flor do teu jardim”.
Autor de uma quantidade imensa de canções, foi também autor de romances, peças de teatro das quais se destaca “ Ópera do malandro” com canções inolvidáveis, O malandro, a doçura de Teresinha, a discriminação de uma sociedade hipócrita em Geni e o Zeplim, a ousada sensualidade de O meu amor.
Chico, o nosso Chico, bem merece este prémio máximo da língua portuguesa. Tanto mais o merece quanto sabemos que nesta era de retrocesso, em que o Brasil entrou num túnel tenebroso e inquietante, ele constitui um vexame para o poder instituído, ignorante, retrógrado e prepotente.
Quando vemos a abominável criatura que governa o país, Bolsonaro, o “coiso”, ignorar a atribuição de um galardão de tal relevância a um seu compatriota e referir-se à morte recente de um outro enormíssimo nome da MPB, João Gilberto, com um “Era uma pessoa conhecida. Meus sentimentos à família, tá ok?” , sentimos bem a força e a certeza contida nos versos de Buarque, “Apesar de você, amanhã há-de ser outro dia”!
Parabéns, Chico! Daqui mandamos um cheirinho de alecrim!
Setúbal, 17 Julho 2019
A Direcção da AJA