Só ouve o brado da terra
O álbum “Coro dos tribunais” saiu pouco tempo depois do 25 de Abril, mas contém quase só canções anteriores a essa data. Pode-se considerar um tanto ultrapassado pelos acontecimentos, pois anuncia-se em “Só ouve o brado da terra” a iminência da revolução. A ditadura e a opressão da população (agrária) portuguesa são transmitidas pelas metáforas do “clarim da morte”, da “noite assassina”, de “quem domina sem nos vencer”. A exploração é-nos transmitida na terceira estrofe (“Andam os lobos à solta”) e na última estrofe. A estes elementos negativos opõem-se a revolta nascente (“Agora é que pinta o bago/ Agora é que isto vai aquecer”), os que a apoiam e que nunca perderam o contacto com a terra (“Quem dentro dela! Veio a nascer”, o pastor, o “Homem de costas vergadas”) e a solidariedade do cantor com o sofrimento do povo.
José Afonso traduz nesta canção o seu alinhamento com a população agrária. Isto nada tem a ver com a linguagem idealizante da propaganda oficial, com a qual se pretendia transmitir uma imagem dum mundo agrário harmonioso. Sendo da geração anterior à de Sérgio Godinho e José Mário Branco, ainda podia optar pela cultura rural (em vez da urbana) como portadora da sua intervenção e de um conteúdo revolucionário. O cantor escolheu ir para “uma canção que seguisse na esteira da canção tradicional rural”, inspirando-se e desenvolvendo temas e elementos da cultura rural. Como ele próprio assinalou: “Isso é, afinal, a face de um povo, e não há que ser rejeitada.” José Afonso teve a oportunidade de conhecer a vida tradicional do campo, viajando com o coro do Orfeon enquanto estudante, como professor em várias localidades e, o que é muito importante, cantando em todo o país. Este conhecimento traduz-se p.ex. em “A mulher da erva”.
A industrialização portuguesa fez-se tardiamente, e é só na segunda metade deste século que as suas consequências se fizeram sentir, sobretudo a partir dos anos 60. Já em 1981, José Afonso reconhece o progressivo e irreversível desaparecimento do mundo português que ele evoca em tantas canções: “Custa-me ver no meu país este massacre contra-cultural de que estamos a ser vítimas (…) Tenho uma certa nostalgia de uma certa imagem de Portugal que me foi dada por Raul Brandão, Camilo Castelo Branco, pelo próprio Eça de Queiroz (…), pela poesia popular portuguesa, (…), pelas adegas que hoje estão a ser substituídas pelos snack-bares, pelos cinemas de bairro que estão a ser substituídos pelos estúdios (…). Com as suas canções, ele queria conservar a cultura sem ser conservador.
in “A canção de intervenção portuguesa – Contribuição para um estudo e tradução de textos” de Oona Soenario, 1994-1995, Universidade de Antuérpia