O cavaleiro e o anjo
Quanto à interpretação dos textos de José Afonso, baseio-me sobretudo na dissertação de E. Engelmayer, “Utopie und Vergangenheit: das Liedwerk des portugiesischen Sãngers José Afonso”.
A canção “O cavaleiro e o anjo” foi publicada no álbum “Cantares do andarilho”, em 1968, durante a ditadura. Descreve a vida de quem era perseguido pela PIDE (o “eu”). Por causa da censura, era impossível referir-se directamente aos problemas da época, pelo que José Afonso o fazia de modo indirecto:
A frase “Ao romper do dia” refere-se à hora preferida da PIDE, para prender pessoas: cedo da madrugada. Por isso, o som de passos a essa hora era bastante ameaçador.
Os membros da PIDE são indicados como “anjos”, uma espécie de anjos da morte, o que também explica o uso de “negro”. Evoca-se assim a associação com a morte, reforçada pela imagem da “espada”.
Quem andava fugido da PIDE passava, na maior parte das vezes, as noites em casas diferentes. Por isso, José Afonso fala em “hospedaria”.
Outra referência à vida do fugitivo encontra-se com a frase “Dorme ao relento”. Nos textos de José Afonso, “dormir ao relento” forma uma espécie de “leitmotiv”, quando pretende retratar a sua vida ou a de outros.
Às vezes, é dificil ver a quem se dirige o “eu”. Parece haver aqui três interlocutores, o “eu”, outro fugido e os homens da PIDE. A terceira estrofe pode-se considerar como uma autopresentação do “eu” a quem entrou na hospedaria, talvez ao vento, talvez a outro perseguido ou os homens da PIDE. No entanto, é mais provável que seja outro perseguido, já que, na quarta estrofe, o “eu” lhe dá o conselho de fugir da morte (a PIDE) e de combater com os membros da resistência. Também podemos pensar noutra situação, imaginando que é outro fugitivo que se dirige ao “eu” anterior. No entanto, toma-se um pouco mais provável serem os homens da PIDE com a quinta estrofe, quando o “eu” se parece dirigir ao anjo negro.
Aliás, a tentação do anjo negro também pode ser interpretada de diferentes maneiras. Pode ser que o perseguido se sinta cansado do seu modo de viver, e que esteja próximo de entregar-se ao perseguidor. Assim, entraria num pacto com o anjo negro, renunciando à resistência contra o regime criminoso. No entanto, se interpretarmos o anjo negro como um verdadeiro anjo da morte, toma-se possível que o “eu” veja a morte como uma libertação. Seja como for, ao :fim da estrofe, o “eu” consegue resistir à tentação quando decide que vai ficar.
in “A canção de intervenção portuguesa – Contribuição para um estudo e tradução de textos” de Oona Soenario, 1994-1995, Universidade de Antuérpia