José Afonso em Lourenço Marques

Nos meados dos anos sessenta (1965), aluno do então 4º ano do liceu, em Lourenço Marques, vi na pauta que esse ano teria como professor de geografia e história um tal de José ( nota: a pauta omitiu o nome Afonso) Cerqueira dos Santos, ilustre desconhecido. O professor, soube depois, tinha sido proíbido de ensinar no então continente e desterrado em Moçambique, sob condição, da PIDE, de não se meter em política. Sentado na primeira fila da aula, reparei no primeiro dia de aulas que o professor trazia um par de peúgas de cores diferentes. Penteava-se com os dedos. O ar era displicente, o sorriso cúmplice e doce. Tais ingredientes, por serem nesse tempo contra a corrente, fascinaram-me. Apresentou-se timidamente e omitiu a actividade no mundo das cantigas. Era um professor excepcional. Incitava-nos à investigação e a questionar tudo, desde os manuais a ele mesmo. Retive para sempre uma frase:” Não estou aqui para impingir, mas para insistir e resistir, convosco de preferência”.
Um dia, na discoteca Baily, em Lourenço Marques, descobri entre os velhos discos em saldo, um single com o meu professor agarrado a uma velha viola. Zeca Afonso. Duas músicas: “Menino do Bairro Negro” e “Natal dos Simples”: Comprei o disco. Na aula seguinte, quando os colegas tinha saído, confrontei o professor com o disco. Disparou, estupefacto: “Onde é que arranjaste isso?”. Expliquei o que se tinha passado. O espanto do mestre era legítimo – ele fora expulso de Portugal e proscrito nas rádios justamente por causa daquele disco e das posições que defendia em defesa dos humilhados, contra a hipocrisia intelectual dominante, todos os dogmatismos e o regime fascista.
Havia, no então Rádio Clube de Moçambique, um programa em que semanalmente eram divulgados os cantores mais votados. Elvis Presley liderava. Organizei no liceu uma votação para o disco do nosso professor. Teve adesão maciça. Na semana seguinte, Zeca Afonso liderava o “Hit Parade” e assim esteve durante nove semanas. Tive que emprestar o disco ao radialista João de Sousa, mais tarde meu colega, que desconhecia o autor. A PIDE acordou. Mandaram confiscar o móbil do crime, sentenciando a proibição do cantor. Por essa altura, já eu andava em tertúlias clandestinas com o meu professor. Ele cantava. Eu dizia o “Mostrengo” de Fernando Pessoa. Imaginam o resultado: no fim do ano, a PIDE decretou novo exílio ao professor, que foi ensinar para o Liceu Pêro de Anaia, na cidade da Beira, a mais de 500 quilómetros. Depois, seria recambiado para Portugal e definitivamente banido do ensino.”
Guilherme Pereira
Foto e texto retirado daqui
Acabei de ouvir o Cantigas do Maio e redescobri o meu gosto pela música do Zeca Afonso. Acho-o fantástico e não só pelo seu canto contestatário, as suas músicas têm uma melodia e uma densidade assinaláveis. Quanto ao seu lado contra-corrente, as suas letras são límpidas, cristalinas, até talvez aos olhos do sistema actual reinante, naïves mas de uma pureza tão bela como diamantes cuja lapidação não lhes tirou nada da sua força em bruto, a força da verdade, sem interesses nem mistificações nem hipocrisias. Estou duplamente feliz poprque ao entrar neste website, deparei com uma crónica a referir que o Zeca Afonso leccionou no Pêro de Anaia na Beira, onde eu também estudei no ano de 1969-1970. Sinto-me muito honrado por este homem de grandeza moral ímpar ter vivido na Beira, minha cidade natal. Homens como Zeca Afonso precisam-se neste Portugal triste e sem esperança.
Um abraço amigo,
Kim Matola
Nasci em Moçambique e vim para a Metrópole em 60. Tinha frequentado o LAE, quando ainda estava em instalações provisórias, num edifício junto ao Clube 1º de Maio. Aderi agora a este grupo do LAE e foi com agradável surpresa que encontrei esta notícia sobre o Zeca Afonso. Quando vim para a Metrópole, fiquei a viver em Coimbra, onde estive durante 43 anos. Foi aí que me cruzei com o Zeca Afonso e com tudo quanto ele acabou por simbolizar. Mantenho ainda amizade com o Rui Pato, que o acompanhava deste muito novo. É sempre uma referência. Obrigada, meu amigo. Um abraço da Nazaré
Vi Zeca Afonso e ouvi ao vivo da janela de um club em Quelimane onde se festejava o baile dos finalistas do liceu, creio que no ano de 1965.
Por incrível que pareça era o club mais facho ( como a malta dizia) da cidade.
Ouvi-o cantar e logo notei a rebeldia, num local onde todos estavam vestidos para uma noite de gala, ele estava de manga de camisa e cantou lindamente assim
O Zeca Afonso é de Moçambique e esteve em Portugal a estudar.Quando regressou a Moçambique foi trabalhar para a Beira para um liceu onde trabalhava uma prima casada com o director dos caminhos de ferro de Moçambique na Beira.
Quanto à historia da votação no liceu também não é verdade , pois a unica estação que tinha um hitparade era a estação B do Radio Clube de Moçambique a muito conhecida LM Radio, que tinha um serviço em Inglês 24 horas por dia e o Hitparade era de votos na Africa do Sul pois a estação era paga pela SABC South African Broadcasting Corporation. Os primeiros discos do Zeca Afonso, foram editados em Moçambique pela casa Bailey, como um conjunto de fados de Coimbra , inicialmente com vários ex estudantes de Coimbra como o Eng.Roxo Leão, Almeida Santos,etc e só uns anos depois é que gravou a solo. A PIDE em Moçambique tinha mais com que se entreter do que com o Zeca Afonso ou o pateta do MFA o Otelo Saraiva de Carvalho
“Um dia, na discoteca Baily, em Lourenço Marques, descobri entre os velhos discos em saldo, um single com o meu professor agarrado a uma velha viola. Zeca Afonso. Duas músicas: “Menino do Bairro Negro” e “Natal dos Simples”.
Não houve nenhum single com estes dois temas. O “Menino do Bairro Negro” é de 1963 e faz parte do EP BALADAS DE COIMBRA e o “Natal dos Simples” de 1968 (depois de Zeca ter vindo do Moçambique em 1967) fez parte do LP “CANTARES DO ANDARILHO”, o 1º a ser gravado para a Orfeu do Arnaldo Trindade.