José Afonso e José Niza: 2 histórias
José Afonso canta acompanhado por Levy Baptista, David Leandro, José Niza e Sousa Rafael (Cine-Teatro Restauração, Luanda, 1958)
DE COMO OS SAPATOS DO ZECA AFONSO DOBRARAM O CABO BOJADOR
Já o sol era nascido acima do horizonte atlântico que se avistava do paquete “Pátria”, de regresso a Lisboa com a Tuna Académica. O pelotão da noite regressava às «casernas» da 2ª classe para retemperar energias para o dia seguinte.
Éramos uns três ou quatro, incluindo o Zeca e eu, de viola, caminhando no deck, da ré para a proa.
A noite tinha sido mágica. Cabelos ao vento, qual deusa grega, Natália Correia recitou poemas que a brisa levou e o Zeca cantou umas coisas que já não eram fado, e que ainda não eram balada.
Na rotina dos cuidados de higiene e limpeza do navio, um marinheiro mangueirava o deck com fortes jactos de água marinha.
Caminhávamos. De repente, o Zeca parou e disse: «Tenho os pés molhados». E flectiu a perna para inspeccionar o que se passava com a sola dos seus sapatos. Assistimos então a uma revelação: as solas de ambos continham crateras do tamanho de medalhas comemorativas de não sei o quê; e onde devia haver sola, cabedal ou couro, só havia buracos, e mais, onde devia haver meia, também não havia.
À luz nascente daquele novo dia, a única e primeira coisa que se vislumbrava, enquadrada pela moldura do buraco, era a pele da planta do pé do cantor, que ele, agredido na sua sensibilidade cutânea, dizia «molhada».
E então, o Zeca, lentamente, descalçou o primeiro sapato. Depois, o segundo. E, num gesto e movimento que me lembrou aquela devolução que os «matadores» fazem para o público, das ofertas que lhes atiram para a arena na volta triunfal das lides, o Zeca lançou os sapatos ao mar.
Ainda se mantiveram à tona por segundos. Depois, foram rapidamente engolidos pela espuma e deglutidos pela sucção do mar.
«E agora, José?» – teria pensado eu.
«Ó Zeca, como aqui no barco não há sapatarias, como é que vai ser amanhã?»
O Zeca, descalço e de peúgas rotas e molhadas, caiu finalmente em si:
«É pá, pois é, não há sapatarias… »
No dia seguinte, quando o avistei, a primeira coisa que fiz, com curiosidade, foi olhar para baixo, para o chão, para ver como era o pedestal da estátua. Um espanto: sapatos reluzentes, engraxados, talvez de marca.
«Ó Zeca, onde é que, como é que…», perguntei eu.
Já não me lembro da resposta dele, nem penso que interesse para o caso porque, às vezes, as respostas já vêm contidas nas perguntas.
«CORO DOS TRIBUNAIS», CHOURIÇO E VINHO TINTO
Em 1974, já depois do 25 de Abril, o Zeca Afonso foi a Londres gravar mais um dos seus discos, o «Coro dos Tribunais». Competiu-me a mim a produção e ao Fausto a concepção dos arranjos e a direcção musical.
O Zeca, sobretudo quando gravava no estrangeiro, gostava sempre de convidar outros músicos e outros cantores. Sentia-se melhor assim, mais acompanhado, e gostava também de ouvir as suas opiniões e as suas sugestões.
Dessa vez, além do «núcleo duro» do disco (Fausto, Carlos Alberto Moniz, Michel Delaporte, Yório) estavam também o Adriano e o Vitorino, mas nenhum teve envolvimento permanente na gravação.
E, assim, enquanto nós estávamos em full-time na gravação, e o Vitorino e o Adriano andavam turisticamente por Londres, à descoberta de coisas.
Um belo dia, a meio da tarde, entram os dois, esfuziantes de contentamento, estúdio adentro.
Interrompida a gravação e perante a estupefacção dos engenheiros de som ingleses, o Vitorino anuncia a grande notícia: ali mesmo, a dois passos do estúdio, tinham descoberto um «lugar» onde se vendia chouriço, presunto, vinho tinto e pão caseiro!
Mais não bastou para que instrumentos musicais e outros apetrechos sonoros e acústicos
fossem postos em repouso, perante o ar incrédulo dos ingleses.
E o Zeca disse: «Bem, vamos lá então ao chouriço e a molhar a goela»! E se assim o mandou, melhor o fez.