José Afonso: A busca da utopia
«Mandei-lhes um telegrama. Podes pôr isso lá no jornal?»
Olhei José Afonso ainda surpreso pelas suas palavras ciciadas quando o visitei em finais de Junho de 1986. A doença avançava a olhos vistos e fitei-o de novo sem perceber totalmente o alcance da sua pergunta.
Instantes depois tudo se esclarecia: o cantor desejava publicitar que enviara ao Presidente da Guiné-Bissau Nino Vieira um telegrama de apoio para que não fossem fuzilados os seis condenados à morte envolvidos no caso Paulo Correia. Ao tomar esta atitude, José Afonso invocou razões de humanidade e as tradições humanísticas do PAIGC fundado por Amilcar Cabral.
Mesmo aqui, na aparente dissonância em relação ao Partido no poder em Bissau, José Afonso não questionava o processo político guineense nem o apoio que mantinha em relação a todos os movimentos de libertação africanos das ex-colónias portuguesas.
De resto, a realidade colonial que conheceu de perto, sobretudo em Moçambique, foi marcante na sua formação política e até na sua música.
Sempre de costas para o poder, apenas se lhe reconhecem dois períodos, ou situações, em que lhe concedeu o seu apoio: no período de 25 de Abril a 25 de Novembro, colaborando activamente com as iniciativas da 5ª Divisão e do MFA em relação aos regimes de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé. Esta postura perante os vários e sucessivos poderes, aqui e além fronteiras, é um dos aspectos mais salientes da sua obra.
Curiosamente, apenas uma vez José Afonso concede comparecer a um jantar de Estado, no Palácio da Ajuda: aquando da visita de Samora Machel a Portugal, com quem na ocasião estabelece uma breve conversa.
Era um homem em desobediência civil permanente assumindo-a no sarcasmo e na ironia com que encarava o pomposo da realidade, da vida, da morte ou do Estado.
E todo este olhar perante o mundo se desdobra em sucessivas canções desde a época coimbrã ao período pós-25 de Abril, abrindo perspectivas inovadoras na música popular portuguesa e acabando por constituir um ponto de referência política e ética para várias gerações.
Exigente em tudo o que fazia, excessivo no juizo crítico e na vigilância que impunha a si próprio, José Afonso sempre se escusou a admitir ser um mito. Em todo o caso, para além da sua vontade, ele é hoje, mais do que nunca, um mito do imaginário referencial, quer dos seus admiradores quer de quantos dele divergiam.
«Eu um mito?» – interroga-se um dia. «Só sinto que sou mito quando me falam disso. O facto é que em muitos ambientes fui bem estimado e em outros hostilizado de modo grosseiro».
Envolvido na timidez dos seus gestos e na sobriedade das suas atitudes, o autor de «Menino do Bairro Negro» tem uma infância repartida por Aveiro, onde nasceu em 1929, Angola, Moçambique, onde o pai desempenhou sucessivamente funções de Procurador da República e de Juiz.
A experiência africana infantil permanece-lhe na memória assim como a imagem do pai, de quem fica afastado largos anos, quando este parte para Timor durante a II Guerra e para Moçambique mais tarde.
Todo o espaço de liberdade e subversão transmitido pela realidade física africana transparece na sua obra e nas suas obsessões, assim como muitas das suas referências surrealizantes expressas nas suas canções.
Do pai herda o rigor ético e a pesquisa da informação cultural que passa pelos clássicos portugueses (ao fim da tarde, ele reunia os filhos – João e Zeca e Mariazinha – e lia-lhes poemas de Camões…) e por escritores como Proust e Romain Rolland. Mas para além disso, José Nepomuceno transmite ao filho José Afonso o grande prazer de conversar. «Meu pai queria que eu fosse doutor e não cantador. No final da sua vida já aceitava, quando soube que eram canções contra o regime. Mas o pai de José Afonso morreria sem nunca o ter ouvido cantar.
No quotidiano, do autor da «Canção do Medo» entravam inúmeras histórias, recordações e vivências que contava aos amigos durante largas conversas.
Conversador, contador de histórias, José Afonso não esqueceu os tempos passados em Belmonte, onde um tio lhe vestiu a farda da Mocidade Portuguesa sem lhe esconder as suas tendências salazaristas e pró-hitlerianas.
Quando José Afonso começa a cantar, em Coimbra, por volta do 6.º ano do liceu, está próximo o seu casamento com Amália, de quem vem a ter os seus dois primeiros filhos. O casal encontra dificuldades de ordem diversa e pela primeira vez o cantor experimenta na carne as agruras da vida. Matrimónio desfeito, dificuldades económicas, remete os filhos para Moçambique, onde são recebidos em casa dos pais. Sua irmã Mariazinha, a quem o liga um afecto particular, desempenha um papel particular nesta conjuntura.
Em Coimbra, José Afonso passa pelas Repúblicas, onde conhece a solidariedade e a boémia académica. Tem os primeiros contactos com clubes recreativos e joga futebol («Entreguei-me totalmente à mística da chamada Briosa»), acompanhando a Académica um pouco por toda a parte.
E canta, em serenatas, «em festarolas de aldeia, outras vezes em casa… Era um sujeito qualquer que queria convidar uns tantos estudantes de Coimbra, enchia-nos a barriga de vinho, e a malta cantava…». Nos finais dos anos 40, quando Carmona passa de comboio por Coimbra em campanha contra Norton de Matos, Zeca, de emoção, cchora que «nem um vitelo» ao ver o antigo chefe de Estado. É o tempo das boleias, da capa e batina («Porque um tipo de capa e batina era rei nas estradas») que lhe permite os primeiros contactos com os meios miseráveis do Porto, no Bairro do Barredo, que motivará a canção «Menino do Bairro Negro».
Sem uma postura ainda politizada, José Afonso é sensível aos dramas sociais que as suas viagens lhe desvendam.
Só em 58/59 com o surgimento de Humberto Delgado e a crise académica de 1962 – já José Afonsoi dava aulas e conhecera Zélia – se processa uma viragem na sua evolução político-cultural. O alvoroço político provocado tanto pelo general Humberto Delgado como pelo movimento estudantil de 62 reflectem-se na própria obra de José Afonso. É de 1958 a publicação do seu primneiro disco – «Baladas de Coimbra», com «Menino d’Oiro», «No largo do Breu», «Tenho barcos, tenho remos» e «Senhor Poeta», canções que se desviam da tradição coimbrã pura, tanto nas temáticas como na interpretação. Zeca é apenas acompanhado à viola por Rui Pato. Como tantas vezes sucederá ao longo da sua vida, apenas suportado por cordas de viola. Não havia as guitarras de Coimbra que Adriano Correia de Oliveira, por exemplo, nunca abandonaria.
Os discos posteriores aprofundam esta experiência. Continua Rui Pato, a acompanhá-lo sozinho, e os poemas são mais empenhados do ponto de vista social: «Menino do Bairro Negro» e depois «Vampiros», uma balada emblemática das suas posições antifascistas.
Evidentemente que nesta época José Afonso não abandonou o lirismo de Coimbra – que de resto o acompanha um pouco por toda a vida, assim como o fado de Coimbra, como se verifica em 1980 quando publica o seu album «Fados de Coimbra», dedicados à memória do seu pai e de Edmundo Bettencourt (um dos seus poetas preferidos). Mas a componente social continua a marcar preferencialmente a sua obra.
As dificuldades económicas que atravessou em Coimbra obrigaram-no a abandonar os estudos e a daegrinação docente iniciada em Mangualde acaba por conduzi-lo até ao Algarve, onde convive com Luiza Neto Jorge, António Ramos e Zélia, com quem – «um pouco ao jeito siciliano» – acaba por casar contra a vontade da família da noiva.
A companhia da Zélia é determinante na evolução do poeta. Abrindo-lhe espaço para os seus devaneios criativos, escutando-lhe os rumores e os humores, envolvendo-o numa serena e profunda ternura, Zélia seguiu-lhe o percurso e apoiou-o onde a sua acção foi indispensável. Seria ela a sugerir-lhe o regresso a Moçambique para assim poder acompanhar os filhos do primeiro casamento. E em 1964 José Afonso está de novo no então Lourenço Marques onde uma vez mais sente o peso da exploração colonial.
De Lourenço Marques salta para a Beira. Aí assiste revoltado às festividades dos colonos portugueses que apoiam a independência unilateral da Rodésia de Jan Smith. Apesar da presença do irmão João Afonso e dos amigos do cineclube local que chegam a encenar Brecht com músicas suas, José Afonso não resiste e volta a Lisboa em 1967 na disposição, como revelou a Adelino Gomes, à chegada, de ser apenas e exclusivamente professor.
Instalado em Setúbal, os seus desígnios não serão satisfeitosw e a expulsão do ensino oficial por motivos políticos impele-o para as cantigas. O destino era-lhe um tanto traçado pelas perseguições da Polícia Política. E abre-se um novo ciclo, marcado pelo aparecimento em 1968 do album «Cantares do Andarilho».
Até ao 25 de Abril, assistimos a um dos períodos mais fecundos e brilhantes da sua actividade artística que se confundia (ou fundia) com uma intensa actividade de agitação política clandestina, sobretudo os núcleos da LUAR e do PCP da Margem Sul.
Preso diversas vezes pela PIDE («como sabes eu estou preso mas também não sou um homem mau. Viste como foi. Não sejas rabugenta e ajuda o Pedro», escreve ele de Caxias à sua filha Joana em 1973), desenvolve uma dupla acção de agitação cultural e política que o leva a colectividades, clubes recreativos, associações culturais e sindicatos colaborando activamente no movimento constitutivo da Intersindical.
É neste período contactado da margem sul para aderir ao PCP mas recusa, invocando a sua condição de classe. «Respondi que não poderia ser elemento do PCP por várias razões, uma das quais era a minha origem de classe pequeno-burguesa. A única coisa que sabia de certeza eram as minhas limitações e não me arriscava a fraquejar. Se um dia fosse preso e denunciasse camaradas isso constituiria para mim uma experiência da qual nunca me sairia bem. Nunca perdoaria a mim próprio um momento de fraqueza desses. No fundo, gostava também de me movimentar numa certa margem de invenção. E pressentia que existiam outras forças embora o PCP fosse hegemónico naquela zona».
A escusa de José Afonso consagrava, afinal, a sua rebeldia permanente, o seu imaginário sem rédeas e possivelmente incompatível com qualquer disciplina partidária. E sugeria algo que sempre o perseguiu e de que sempre procurou libertar-se: o medo, embora a sua vida e prática social ilustrem a coragem da sua postura. Mas o facto de não aderir ao PC não impediu que as forças maoístas de vários quadrantes o classificassem depreciativamente, de, antes do 25 de Abril, «Amália do PC».
Mas também não o impediu de colaborar, antes e depois do 25 de Abril, com o seu PCP. O seu não alinhamento organizativo concedia-lhe uma grande margem de manobra suportado pelo seu talento artístico. Canta na Festa do Avante, em 1980, e durante a sua enfermidade Álvaro Cunhal, embora sem o visitar, coloca à sua disposição os seus préstimos caso houvesse notícia de cura para sua doença na URSS, como em tempos se admitira.
A CGTP vai um pouco mais longe e mantém-lhe um apoio inequívoco incluindo o de carácter material, como de resto várias outras entidades não oficiais, amigos e admiradores anónimos.
Sucessivamente publicará «Contos Velhos, Rumos Novos», «Traz Outro Amigo Também» e «Cantigas do Maio», com que inicia uma colaboração activa com José Mário Branco que se prolongou até hoje.
Este album marcará particularmente a sua carreira, pois nela se incluem «Cantar Alentejnao», canção mais conhecida por Catarina, e «Grândola Vila Morena». É sobretudo a partir deste trabalho que o chamado «nacional-cançonetismo», já na era marcelista, sente a necessidade de encontrar respostas musicais do regime face ao contar José Afonso.
Mas nascem novos cantores: José Mário Btranco, Sergio Godinho, Luis Cilia, Fanhais, Manuel Freire e mais tarde Vitorino, Fausto, Júlio Pereira e Janita Salomé, um grupo heterogéneo que comunga o mesmo referencial e o mesmo propósito: José Afonso e o alargamento dos espaços da música popular portuguesa.
Num outro plano, Adriano Correia de Oliveira, embora fiel às formas tradicionais de Coimbra, opta por dar voz à poesia de Manuel Alegre, que Zeca Afonso curiosamente nunca cantou.
Mas José Afonso e os outros cultores da chamada MPP criaram também um grau de exigência maior por parte do público, que se reflectiu tanto no panorama da música ligeira como no próprio fado. Amália pasa a cantar Camões, Alexandre O’Neill, Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, e na chamada canção ligeira surgem intérpretes de maior qualidade como Paulo de Carvalho ou Fernando Tordo.
Ninguém ficou indiferente à acção musical de José Afonso, que até ao 25 de Abril ainda publicaria «Eu vou ser como a toupeira» e «Venham mais cinco».
O 25 de Abril, desencadeado por «GRândola Vila Morena», surpreende-o e «obriga-o» a participar activamente em todas as acções de massas. Ocupações de casas e terras no Alentejo, manifestações, comícios, acções de dinamização no nordeste, a tudo José Afonso se entrega de forma esgotante. Canta por toda a parte e só em 1975 volta a publicar um album – «Coro dos Tribunais» – com canções que fizera em Moçambique para a peça de Brecht e outros originais, como «Lá no Xepangara», que o revela ligado ao ritmo e tendências de África. Aqui, desempenha especial colaboração Fausto, também ele directo conhecedor dessas experiências musicais africanas.
Até ao 25 de Novembro é um verdadeiro rodopio, prevalecendo uma colaboração estreita entre o cantor e a LUAR. O desencanto posterior – jamais calará, por exemplo, o «escândalo dos salários em atraso», ou a situação de miséria da população trabalhadora da região de Setúbal, onde vive até morrer – os próprios acontecimentos que o levaram a escrever ao PAIGC, para Bissau, e posterior evolução política encenada pelos vários Governos constitucionais abrem-lhe espaço para se dedicar mais cuidadosamente à sua obra.
Os albuns «Com as minhas Tamanquinhas», «Enquanto Há Força» e «Fura-Fura», são verdadeiras crónicas do período revolucionário e pós-revolucionário. A história que se fez confunde-se com a sua vida e obra: sendo protagonista de tantos acontecimentos, é também o seu jogral / narrador.
Politicamente, manifesta o seu apoio claro a Otelo Saraiva de Carvalho em 1976 e em 1981, e estabelecdeu com ele uma amizade profunda. Nas eleições de 1986, José Afonso apoia Maria de Lurdes Pintasilgo, que corresponde às suas convicções, e confiança nas organizações populares de base, cujo papel social a ex-primeira-ministra se propunha enriquecer.
Com mos seus dois últimos albuns publicados em vida, «Como se Fora seu Filho» e «Galinhas do Mato» (este já com a colaboração vocal de outros cantores), José Afonso prossegue as suas vertentes estéticas e políticas. Por um lado, um grande enriquecimento musical a que não é estranho no primeiro caso a colaboração de Fausto, Júlio Pereira e José Mário Branco e, no segundo, a destes dois últimos. Por outro lado, José Afonso continua a sua actividade cronista e aponta a sua proposta utópica que sempre perseguiu em vida. A construção da cidade sem barreiras de homens iguais e livres é cantada em «Utopia» inserta no primeiro daqueles albuns.
Em cada disco que saía José Afonso encontrava motivo de crítica. Nunca um disco o satisdfez completamente. Depois de publicados, como confessava, era incapaz de se ouvir e de ouvi-los. Esta exigência sobre si próprio não o poderá agora assumir quando ainda este ano for publicado um novo album da sua autoria, para o qual deixou originais e todas as indicações. Provavelmente na capa seria ironizada a figura do presidente da Câmara de Lisboa, Nuno Abecassis – cuja vereação, posinal, já concedeu o nome de uma da rua da capital a José Afonso.
Mesmo depois de morto, José Afonso continua assim de costas viradas para o poder – que à boa tradição portuguesa se preocupa em fazer agora o que lhe recusou em vida.
Texto de José A. Salvador publicado a 28 de Fevereiro de 1987 no jornal «Expresso».