Evocação de Alípio de Freitas feita por João Madeira em sessão realizada no núcleo de Lisboa da AJA
O texto que se segue foi apresentado e lido pelo historiador e membro da direcção da AJA, João Madeira, na sessão evocativa dos 90 anos do nascimento de Alípio de Freitas, realizada no dia 17 de Fevereiro de 2019 no núcleo de Lisboa da Associação José Afonso.
“Apresentação de Resistir é Preciso – AJA Lisboa
17 Fevereiro 2019
Por João Madeira
‘Resistir é preciso’ foi originalmente editado no Brasil em 1981. Alípio tinha saído da prisão dois anos antes, justamente no dia do seu aniversário. Perfazem hoje quarenta anos.
Fora condenado por vários tribunais militares, primeiro a 30 anos, depois a mais 24 e a que, já depois de preso e condenado, se acrescentariam outros 15, administrativamente. Se não o quiseram condenar expressamente à morte ou a prisão perpétua, quiseram condená-lo a morrer na prisão. Não conseguiram! Foram obrigados a decidir pela sua libertação, resultado do seu irredutível inconformismo, e do modo como habilmente explorou as próprias debilidades e contradições da Nova Lei de Segurança Militar brasileira. Mas, resultado também de um longo e persistente trabalho de solidariedade internacional, em que se insere a canção do Zeca.
A sua pena seria revista com a revogação do quadro penal em que os militares se apoiaram e conseguiria assim ser libertado. Apesar de tudo, os militares retiraram-lhe a cidadania brasileira e as autoridades consulares portuguesas recusaram a emissão de um passaporte português. Tornava-se apátrida.
Intensamente vigiado pela polícia, recusada a readmissão na Universidade, impossibilitado de recuperar a carteira de jornalista, vendeu roupa num mercado de rua do Rio de Janeiro e só dificilmente conseguiu trabalho informal como jornalista. É neste contexto de uma liberdade vigiada, cercado por dificuldades e adversidades de toda a ordem, que, em dois meses, de um ímpeto, escreve “Resistir é Preciso”.
O livro foi à época o primeiro livro de denúncia da tortura e da violência policial da ditadura militar. Vários amigos e companheiros alertavam-no para as possíveis consequências dessa publicação, mas o livro viu a luz do dia e teve só no Brasil 18 edições.
Foram precisos 36 anos para que a Âncora proporcionasse uma primeira edição portuguesa. Antes eram raros os exemplares brasileiros que circulavam e foi a versão do original para revisão que a Associação José Afonso publicou na sua página web.
Resistir é Preciso é um documento escrito na primeira pessoa, pungente e exaltante, de um troço doloroso e marcante da vida de Alípio de Freitas – a sua experiência prisional de mais de oito anos pelos antros da tortura e das cadeias degradantes da ditadura militar brasileira.
Alípio conduz-nos passo a passo numa linguagem crua e directa por um longo périplo. Da prisão na rua numa periferia do Rio de Janeiro, em Maio de 1970, às instalações do chamado CODI, Centro de Operações de Defesa Interna, onde foi insultado, espancado, torturado com choques eléctricos no pau de arara, electrocutado durante dias seguidos para que prestasse declarações, denunciasse os seus companheiros, a actividade da organização a que pertencia. Daí passou ao DOPS, o Departamento da Ordem Pública e Social e depois às prisões de Tiradentes, Carandiru, Santa Cruz, Bangu, locais inóspitos, sobrelotados, onde a correspondência da família, os jornais e os próprios livros eram censurados e o regime de isolamento era frequente.
Conhecerá ainda as prisões de Frei Caneca, Ilha Grande e Hélio Gomes, além dos calabouços dos serviços de polícia política de várias cidades. Em todos os presos eram sujeitos a regimes prisionais terríveis, à humilhação, à despersonalização, ao isolamento.
Na vida dos homens e das mulheres que combatem pela liberdade e pela justiça social, particularmente sob as mais duras condições de ditadura, de terrorismo de estado, a prisão constitui porventura a maior das provações. Nesse ambiente concentracionário entrelaça-se a luta pela sobrevivência, pela dignidade e pela solidariedade.
Alípio de Freitas venceu essa provação, sobreviveu, manteve a sua dignidade de homem e de combatente e foi activamente solidário com os seus companheiros de prisão, num tempo e num lugar em que o sistema prisional brasileiro misturava presos políticos com presos sociais, ditos comuns. É disso que fala Resistir é Preciso, olhando o contexto tão eloquentemente expresso no subtítulo Memória do tempo da morte civil do Brasil.
Desse tempo, dirá Alípio “Jamais, por mil anos que viva, a lembrança desses dias pavorosos se apagará na minha memória. Lá aprendi duas duras e inesquecíveis verdades. A primeira é que nada, nada mesmo, nem ninguém, pode roubar de um homem a sua dignidade e a sua fé no ideal que abraçou e se transformou na sua razão de viver, desde que esteja disposto a morrer por ele. A segunda é que a prática da tortura envilece tanto o torturador que, de sua condição de homem, mal resta a aparência. Nem as bestas torturam”.
Alípio descreve-nos o modo como resistiu a tudo isso, sem arrebatamentos doutrinários, sem discorrer em torno de superioridades morais, sem ditar padrões de comportamento, mas também sem falsas modéstias.
Transmite-nos sobretudo a força das suas convicções, chão onde enraizou a sua capacidade de resistência, a sua decisão de não se deixar vergar ou submeter, de não se deixar anular, nem que para isso, no desamparo da prisão respondesse ao insulto ou com o insulto, á violência física com a violência do inconformismo, da rebeldia e também da coragem física.
E transmite-nos um outro poderoso ensinamento. É que a prisão é também uma trincheira de combate, um lugar de luta. Nesse sentido, trabalhou na organização dos presos, tecendo laboriosamente as redes da entreajuda, de solidariedade, da resposta política, recorrendo inclusivamente à greve da fome em movimentos que uniam todos os presos, fossem políticos ou ditos comuns.
Alípio dedicou este impressionante e desassombrado depoimento “A todos aqueles que presos ou em liberdade, lutaram para que cada novo amanhecer tivesse mais um raio de sol”. É, na realidade, um pórtico iluminado sobre os dias duros da prisão, tomados como parte integrante do combate pela liberdade e pela dignidade humana contra a ditadura e todas as formas de injustiça política e social.
Se o quiseram intimidar, para que, uma vez posto em liberdade, se atemorizasse e acomodasse a uma vida pacata, alheia e insensível à realidade das injustiças e das iniquidades, também não o conseguiram. Ao transpor o portão da prisão, quando libertado, em Fevereiro de 1979, aguardado por um batalhão de jornalistas, a um repórter do Jornal do Brasil que lhe perguntou o que iria fazer daí em diante, respondeu apenas – “O que sempre fiz, política”.
Antes de ser preso, o seu itinerário é extenso. Natural de Vinhais, ordenado padre em 1952, parte para o Brasil em 1957, onde, no nordeste, desenvolve intensa actividade social e política. Junta-se às ligas camponesas, participa no Congresso Mundial pelo Desarmamento Mundial e pela Paz, na União Soviética, rompe com a Igreja, é conhecida a frase da carta que dirige ao bispo de S. Luis do Maranhão– “Perco um pequeno púlpito, mas ganho todas as praças”, trabalha nas favelas do Rio de Janeiro. Em acentuada radicalização funda, com vastos sectores da Juventude Operária Católica, de lideranças estudantis e sindicais, a Acção Popular. Participa na campanha vitoriosa de Miguel Arraes para governador de Pernambuco, é, por mais de uma vez, preso. Depois do golpe militar de 1964 refugia-se na embaixada do México, donde parte para Cuba, recebendo treino militar. Regressa clandestinamente ao Brasil, participa nas estruturas armadas da Acção Popular, organização de que se afasta no processo de evolução da AP em direcção ao maoísmo, para fundar o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, a que pertence quando é preso em 1970.
Esse intenso percurso e os anos duros da prisão foram exemplarmente captados por José Afonso na canção que leva o seu nome – “Na prisão de Tiradentes/Depois da greve da fome/Em mais de cinco masmorras/Não há tortura que o dome”.
Depois, em liberdade foi cooperante em Moçambique, jornalista da RTP, fundador da Casa do Brasil, da Associação Casa Grande no Seixal, da Associação Mares Navegados, fundador e presidente da Associação José Afonso, membro da associação Terras Dentro, activista do Tribunal Mundial do Iraque, apoiante activo do Movimento dos Sem Terra e da Liga dos Camponeses Pobres do Brasil, membro da associação 25 de Abril e da Associação Abril.
Como referiu, num raro texto autobiográfico, “mais do que tudo, sou um andarilho e um agitador social dedicado às causas do povo. A minha pátria é a luta do povo. O meu objectivo de vida a construção da Utopia”.
Resistir é preciso sendo um forte libelo acusatório contra a ditadura militar brasileira é igualmente uma denúncia implacável contra a todas as ditaduras que recorrem à perseguição, ao assassinato, à tortura, às longas condenações sem julgamento ou em julgamentos-farsa, ao encarceramento por longos anos em prisões sujas e sem condições ou sujeitas a regimes prisionais sórdidos e humilhantes.
“Resistir é Preciso”, continua a ser nos dias de hoje um poderoso instrumento da memória, da memória tornada arma para que não se esqueça e sobretudo para que não volte a acontecer.
Hoje, olhando para o Brasil, país a que dedicou grande parte da sua vida, da sua energia e da sua inteligência, onde sofreu longos anos de prisão, que este livro tão impressivamente trata, creio bem que o Alípio gostaria que o lembrássemos trazendo aqui mais uma vez a canção que Zeca Afonso lhe dedicou: “Diz Alípio à nossa gente/ «Quero que saibam aí/ Que no Brasil já morreram/ Na tortura mais de mil./ Ao lado dos explorados/ No combate à opressão/ Não me importa que me matem/ outros amigos virão»”.