Eranova: centro coordenador de artistas
Tendo como objetivo contrariar a habitual imagem herdada do período revolucionário, durante o qual as organizações de trabalhadores e as associações populares solicitaram a participação destes numa lógica de gratuitidade, a Eranova assumiu as funções de intermediação de artistas – “centro coordenador de artistas” -, criando para tal um serviço de marcação de sessões, ao mesmo tempo que procurava assegurar as melhores condições técnicas, logísticas e financeiras para os artistas envolvidos. No mesmo sentido, a Eranova proporcionou o desenvolvimento de novas dinâmicas na apresentação de espetáculos musicais organizados, em que participaram vários cantores e grupos de diversos géneros musicais, tais como o rock, o jazz, a música folk e, principalmente, na representação de alguns dos principais protagonistas da canção popular portuguesa, tais como José Afonso, Vitorino, Sérgio Godinho e Adriano Correia de Oliveira. Este último, expulso em 1981 da também cooperativa de dinamização cultural Cantarabril, criada no seio do PCP em 1979, integraria a Eranova até à sua morte, em outubro de 1982.
O crescente recurso a um grupo de reforço instrumental marcaria também as atuações de José Afonso em várias sessões e espetáculos organizados em Portugal e no estrangeiro, fazendo-se frequentemente acompanhar por vários músicos, tais como Fausto, Carlos Guerreiro, Sérgio Mestre, Janita Salomé e Júlio Pereira, entre outros, proporcionando-lhe um calendário regular de atuações ao vivo. Tendo como principal objetivo promover a descentralização cultural e apoiar a dinamização local de cooperativas e de outras estruturas de recreio e de cultura populares, seria também criado o GAEN – Grupo de Amigos da Eranova, que funcionaria como grupo de apoio e de intermediação com outras cooperativas e coletividades artísticas e populares. Até meados da década de 1980, a Eranova desenvolveria uma intensa atividade de produção e de coordenação de diversos eventos por iniciativa própria ou em colaboração, tais como cursos de alfabetização, cursos de construção de instrumentos musicais, cursos de formação de fantoches, projeção de filmes e ciclos de cinema, exposições de fotografia e de artesanato, venda de livros e discos, encontros de poesia popular e espetáculos de teatro, animação circense e música.
Uma das primeiras iniciativas da Eranova consistiu na organização de uma digressão de Sérgio Godinho em finais de 1978. A ligação entre o músico e a cooperativa resultava da proximidade que já tinha com a LUAR e, em particular, com Camilo Mortágua: «eu comecei a ouvir falar do Camilo Mortágua, que foi a alma da Eranova e do seu aparecimento, para aí em 1975. O Zeca tinha uma grande admiração pelo Camilo – mas mesmo uma grande admiração. Aliás, foi isso que o aproximou e também me aproximou um bocadinho, por arrasto, da LUAR». O músico acrescenta ainda: «a LUAR tinha um triunvirato um bocado especial, porque tinha o homem de acção (…), o Palma Inácio. Tinha o Camilo, que era um homem de acção mas com ideias políticas bastante definidas, e tinha o Fernando Pereira Marques que era o intelectual do trio. Sei que o Zeca (…) dizia uma coisa que é completamente justa: o Camilo é uma pessoa que faz. Faz acontecer as coisas. E, de facto, o Camilo sempre foi isso. Em inglês, chama-se um doer».
A capacidade organizativa e executiva de Camilo Mortágua, aliada à necessidade de suprir as dificuldades técnicas e logísticas das actuações ao vivo dos cantores, mobilizou esforços no sentido de se constituir uma estrutura que pudesse conferir algum grau de profissionalismo à actividade musical ao vivo. Segundo Godinho: «eu aderi com muito entusiasmo a essa ideia, porque achava que era mesmo assim. De facto, nesse momento, certos grupos de rock já estavam precisamente nessa senda, não é? Nessa senda, digamos, de haver espectáculos com princípio, meio e fim, uma aparelhagem e condições». Dada a sua participação na versão francesa do musical Hair entre 1969 e 1971, Sérgio Godinho estava habituado a condições técnicas e sonoras cuja ausência nas sessões populares ocorridas durante o período revolucionário limitava a eficácia das actuações. Este problema, aliado à falta de uma entidade que intermediasse o contacto entre músicos e organizadores locais, motivava queixas de vários cantores, entre eles José Afonso: “[a Eranova] vem na sequência de, por um lado, das queixas de todos nós, mas [sobretudo] das queixas do Zeca de que tinham que acorrer a todos os fogos e que andávamos a cantar de graça, e depois não havia organização. As coisas eram muito amadoras. (…) Quer dizer, eu próprio dizia isso. Havia uma contradição muito grande entre o cuidado que nós sempre pusemos, por exemplo, na instrumentação de um disco…»
A digressão de Godinho, intitulada “Sete Anos de Canções” em referência a um verso de Luís de Camões (“Sete anos de pastor Jacob servia”), percorreu várias cidades e vilas do país, sendo esta a primeira vez que Sérgio Godinho seria acompanhado por um grupo musical, o Grupo Provisório nº1, formado por Luís Caldeira (flautas), Zé Carrapa (violas), Paulo Godinho (baixo) e Paleka (bateria). Consistiu em mais de 20 espectáculos do Norte ao Sul do país, passando pelo Faro (Teatro Lethes), Alhos Vedros, Matosinhos, Porto (Cine-Teatro Vale Formoso), Bragança, Guimarães, Viana do Castelo, Coimbra (Cine-Teatro Avenida) e Lisboa (com várias noites no Teatro Maria Matos). Dada a falta de hábito, em algumas localidades, de apresentação de espectáculos com uma sequência de duas horas de canções para efeitos de escuta atenta, Sérgio Godinho recorda a surpresa de alguns membros do público: «havia pessoas que, realmente, perguntavam “mas não há variedades?”…achavam que era insólito preencher um espectáculo inteiro (…). Havia aquele hábito do imediatismo de só cantar umas cançõezinhas…». Esta maior profissionalização das actuações e a própria popularização do formato concerto longe dos grandes centros urbanos anteciparia, em alguns anos, a proliferação de novas estruturas de suporte dos grupos que surgiriam na viragem para a década de 1980, no período do designado «boom do rock português».