Por terras da Covilhã
José Afonso, em 1975, numa sessão de canto popular no salão paroquial de Unhais da Serra.
Foto e testemunhos partilhados por António Duarte, que acompanha José Afonso na guitarra.
Eu saíra em Março de 75 da tropa. ainda vi o ataque ao RaL1. Deve ter isto acontecido na primavera de 75. Pedi ao Fausto e Zeca para virem até cá, para, na Covilhã, a caminho das Penhas da Saúde, no ex-sanatório, onde estavam albergadas cerca de 400 pessoas que vieram de Africa, os chamados retornados, fizéssemos uma sessão de canto. Veio também um grupo de teatro de Setúbal. Solicitei apoio às assistentes sociais e também à ACM, Associação Crista da Mocidade, para nos darem dormida. Veio também a Zélia. Almoçamos na Covilhã e seguimos para a serra. a ideia era, depois do canto, jantarmos no sanatório com os retornados. Já há uns dias que andara por ali e não me apercebera que havia indivíduos revoltados com a vinda apressada para Portugal. Por uma questão de precaução pedi ao grupo que não se falasse em comunismo, situação que embaraçou o grupo, pois a peça de teatro falava disso. A sessão iniciou-se e quando chegou a vez do Zeca cantar, ele disse, com cabeça baixa e consternado face ao ambiente – Bem vou cantar uma canção de amor! E cantou o Milho Verde! Uma voz soou na sala: – Não queremos aqui comunistas! Seguiu-se um silêncio, depois as crianças e mulheres começaram a sair da sala, até que ficou quase vazia. Valeu-me a sorte de que eu conhecia lá muita gente e pedi ajuda. Na altura o Fausto, tipo inteligente, se apercebera de que havia gente da Unita, MPLA e FNLA na sala, daí a divisão das pessoas. Saímos porta fora e as assistentes sociais deram-me duas cadernetas de tikes restaurant, foi a nossa sorte. Com elas fomos jantar e depois dormir. Eu também dormi com eles na camarata da ACM. Na manhã do outro dia a Zélia veio ter comigo para me informar que o Zeca não estava bem da garganta. Bem, o Zeca tinhas dessas coisas, era mesmo assim e desvalorizámos a situação. Depois seguimos para Unhais da Serra, onde o calor das pessoas e o ambiente favorável nos compensou do dia anterior. E pronto! Hoje, quando penso nisso, arrepio-me! De qualquer modo foi uma vitória e um trabalho musical em terreno minado. O Fausto escreveu um dia sobre isso, num livro qualquer que agora não me lembro. Aquela atitude do tipo que gritou, tinha a ver com o facto de o Zeca ter ido a Angola, havia pouco tempo, soube depois!
Fotografia de Francisco Carrola