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LP/33rpm

Galinhas do mato, 1985

ALINHAMENTO

01. Agora
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETE: Luís Represas

02. Tu gitana
LETRA Cancioneiro de Elvas (1ª quadra)/Popular
MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETE: Helena Vieira

03. Moda do entrudo
LETRA/MÚSICA Popular, Beira Baixa
INTÉRPRETE: Janita Salomé, Cramol e Tóinas

04. Tarkovsky
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETE: Janita Salomé

05. Escandinávia-bar, Fuzeta
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETE: José Afonso

06. Década de Salomé
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETES: José Afonso e José Mário Branco

07. Benditos
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETE: Né Ladeiras

08. Galinhas do mato
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETES: Catarina e Marta Salomé, Cramol e Tóinas 

09. À proa
Instrumental
MÚSICA José Afonso

10. Alegria da criação
LETRA/MÚSICA José Afonso
INTÉRPRETE: Janita Salomé, Cramol e Tóinas

FICHA TÉCNICA

edição
Transmédia (SLP 007)
gravação

estúdios Angel 1 e 2, Lisboa
produção e direção musical
Júlio Pereira e José Mário Branco
assistente de produção
João Luís Oliva
som
José Fortes e Rui Novais
músicos

Júlio Pereira, Luís Represas, Helena Vieira, Janita Salomé, Né Ladeiras, José Mário Branco, Catarina e Marta Salomé, Cramol, Tóinas, Carlos Zíngaro, Fernando Ribeiro, António Emiliano, Sérgio Mestre, Paulo Curado, José Pedro Caiado, Adácio Pestana, Tomás Pimentel, José Oliveira, Carlos Martins, Rui Cardoso, Sílvio Pleno, David G., João Nuno Represas, João Seixas e Guilherme Inês
instrumentação
Guitarras acústicas e eléctricas, banjo, baixo, sintetizador, violino, acordeão, piano, flautas, trompa, trompete, trombone, saxofones, clarinete e percussões
capa e arranjo gráfico
Alberto Lopes
fotografia
Roberto Santandreu

Este disco vai, se calhar, surpreender muita gente, que te julgava acabado para a música…

Talvez. Eu, a princípio, achei que não valia a pena, não estava a ver-me assim no papel de compositor. Por mim punha uma pedra no assunto e ficaria o ‘Como Se Fora Seu Filho’ o meu último disco. Mas a verdade é que tinha por aí algum material, disperso por algumas cassetes, que, se calhar era pena ficar aqui perdido. E achei que as pessoas que estavam mais próximas de mim, até em termos de assiduidade, de acompanharem e se interessarem pelas coisas que eu aqui tinha eram, de facto, o Zé Mário Branco e o Júlio Pereira. E foram eles que insistiram nessa ideia, que seria necessário utilizar essas músicas para um novo disco.

Além do que agora foi gravado, existem ainda outros inéditos…

Sim, algumas coisas. Umas que ainda são dos meus primeiros tempos de professorado, em Setúbal, outras feitas em África ou no barco, quando fui colocado em Moçambique. Há coisas que são só pequenos trechos musicais, não são propriamente canções.

Este disco tem também canções dessa altura?

Tem. O tema ‘Galinhas do Mato’, por exemplo, é, talvez, o mais representativo. Tem uma certa sugestão africana de ritmos e coros, é uma música que eu pus na prateleira, à espera de um dia ter um texto que se enquadrasse. E há o ‘Tu Gitana’, uma música que eu fiz com uma ‘letra robot’, a letra de uma canção de Vila Viçosa que eu cantei muito em Coimbra, no grupo que deu origem ao Coral da Faculdade de Letras. Descobri que essa letra se coadunava perfeitamente com aquela música que eu tinha feito.

É essa que é cantada, no disco, pela Helena Vieira…

É e, aliás, acho que é admiravelmente cantada. Estas duas músicas são talvez de 1968, portanto anteriores a quase todas as que eu fiz para o ‘Como Se Fora Seu Filho’. A mais recente é, talvez, a ‘Alegria da Criação’, que foi feita para a peça Fernão, Mentes?”.

Dizia eu que este disco pode surpreender muita gente. Até porque é feito segundo um esquema que creio ser mais ou menos inédito em Portugal: é, digamos, um disco de autor, com a maioria das interpretações entregues a outros cantores…

Isso é uma coisa que, para lá das condicionantes que obrigaram a que assim fosse, me dá um certo contentamento. Até porque, neste caso, se pode escolher a voz apropriada para cada tipo de canção. O ‘Tu Gitana’, por exemplo, nunca poderia ser cantado por mim, nem mesmo quando eu tinha voz para cantar. Tem uma tessitura, uma escala de tal ordem que só uma mulher com uma voz educada como a Helena Vieira a poderia cantar.

O Júlio Pereira e o José Mário Branco coordenaram o trabalho de arranjos. Vocês mantiveram-se em contacto com regularidade?

Sim, sim. O Júlio, por exemplo, não dava um passo que fosse fora do meu conhecimento. E a ‘Alegria da Criação’ é uma canção cujo arranjo coral e instrumental se deve ao Zé Mário. É claro que muito embora eu tenha concebido muitos dos arranjos, ao longo deste meu trabalho, não conseguiria fazer este disco sem a participação do Júlio e do Zé Mário, que foram uns excelentes colaboradores. Estávamos em contacto telefónico quase permanente e, no estúdio, estive regularmente a par do que se foi fazendo. Mas o trabalho de bases foi feito por eles, embora eu soubesse o que quer o Júlio, quer o Zé Mário iam fazer. Eles gravavam previamente o que faziam e eu dava sugestões a partir daí, imitando sons, dando imagens, sei lá… É muito, difícil explicar isto tudo, é um processo empírico…

Estás, portanto, satisfeito?

Eh, pá! Pela primeira vez, isto deu me um prazer bastante grande. Talvez pelo facto de serem outras pessoas a cantar, mas também pelo tipo de músicas… O ‘Agora’ ou o ‘Galinhas do Mato’, por exemplo, eram coisas que estavam na prateleira e cheguei a admitir não poder gravar. ‘Galinhas do Mato’ é uma canção demasiado africana, demasiado ligada às minhas memórias de infância, e pensei que não encontraríamos uma solução instrumental para ela. Mas, afinal, com a ajuda de um computador, conseguiu-se.

Um computador?

Um computador, nas mãos do Júlio Pereira. Mete sons vários, desde o kissange, percussões e outros sons mais ou menos electrificados ou plastificados mas que são exactamente tipo som artesanal. E tivemos que recorrer às vozes das mulheres do Coro de Oeiras, um bocadinho modificadas, de modo a criar aquele ambiente africano. E, além disso, contámos com as filhas do Janita que, no caso presente, parecem duas pretinhas a cantar… Eu fiquei surpreendido porque, no final, o resultado é de tal ordem que eu me senti transportado aos meus quatro ou cinco anos, quando estive no planalto do Bié. E há outras coisas: uma música chamada ‘Tarkovsky’, em que utilizámos quase arbitrariamente o nome do cineasta russo porque, a dada altura, eu pensei criar um ambiente, num coro sem palavras, que tivesse um pouco de África e da Rússia. Imagina-te no ‘Andrei Rubliov’ ou, de uma forma geral, nos filmes do Tarkovsky. E lá se fez, com a ajuda da trompa do Adácio Pestana e da voz do Janita.

Essa música representa, de algum modo, uma homenagem ao Tarkovsky?

De certo modo. Até porque os filmes dele me impressionaram bastante e deixa-me dizer-te que estou convencido que dificilmente ele poderia fazer, no Ocidente, os filmes que, apesar de todas as limitações que teve, fez na União Soviética. Aquele ‘peso’, aquela ligação telúrica à ‘mãe Rússia’, aqueles personagens espantosos que ele criou, tudo isto é difícil reproduzir aqui, quer na Europa, quer nos Estados Unidos. Por isso a música também é uma homenagem. Sabes?, eu quando falo de coisas de música, falo também muito de questões extramusicais, para dar o ambiente. Socorro me muito de imagens, de espaços e até da mímica. Quando estou diante de um tipo que vai cantar as minhas coisas bamboleio me, faço caretas para ele se situar na interpretação que idealizei. Foi um trabalho de equipa excelente, sem qualquer tipo de asperezas, com um entendimento espantoso entre a malta…

Coisa que nem sempre é fácil, na música…

Pois não. Isto é tudo um bocado confuso, o que nós fazemos é sempre uma coisa muito periclitante: meter em três minutos uma canção e conseguir um efeito único… Mas que a música, entre aspas, ‘popular portuguesa’ continua viva acho que sim. E a prova é que têm saído coisas, cada músico tem qualquer coisa de seu, não se confunde com outro. Há uma marca pessoal, que é desejável.

“Música popular portuguesa” entre aspas? Porquê?

Porque esse conceito é muito polémico. Não sei se lhe chame música de texto, música social, música de intenção política, música de intervenção. São tudo conceitos muito indefinidos, mas música popular é ainda mais polémico. Senão voltamos outra vez para a discussão sobre música popular e música tradicional e eu não quero entrar nisso. Prefiro dizer ‘a música da minha área’ ou ‘da nossa área’, abrangendo um conjunto de colegas ou ex-colegas que sempre estiveram nestas coisas, que sempre tiveram um percurso próprio.

A própria intenção e a intervenção política são hoje, por vezes, postas de parte por alguns colegas teus…

Pois é, mas também não quero entrar nessa área. Isso é um problema de consciência. Eu sempre disse que a música é comprometida quando o músico, como cidadão, é um homem comprometido. Não é o produto saído do cantor que define esse compromisso mas o conjunto de circunstâncias que o envolvem com o momento histórico e político que se vive e as pessoas com quem ele priva e com quem ele canta. Tipos como o Daniel Viglietti, por exemplo, são cantores com um inegável perfil político e militante, também. Se isso é viável e de que maneira não sei…

Mas tu, por exemplo, continuas activo a comprometido politicamente. Ainda há poucos dias apelaste ao voto na APU para as eleições autárquicas…

Não consigo nem pretendo estar fora das coisas. Este meu apelo ao voto na APU, não é um apelo paternalista, mas fruto da constatação directa, através da minha experiência como cidadão, que as vereações mais honestas, que dão prioridade a coisas essenciais como saneamentos básicos, escolas e jardins de ­infância, são efectivamente as da APU. Posso citar Coruche, Moura, Seixal, Mértola… E, tomando estes casos como padrão, eu não hesito em dizê-lo às pessoas, se é que a minha presença tem alguma força. Uma coisa é a minha actividade musical, a fruição lúdica da música, outra coisa é o homem político que sou. Agora como é que as duas coisas se harmonizam, ainda estou para saber…

As Presidenciais estão também a chegar. Já tomaste posição?

Decidi ontem [22 de Novembro de 1985] apoiar a engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo. A política não é o reino do absoluto, estamos numa conjuntura que não aponta para nenhuma acção popular e revolucionária. Afirmar isto era pura demagogia. Portanto eu apoio um candidato que dê margem para determinadas movimentações a que eu chamo de contra poder… E começo a desconfiar a sério da rigidez partidária. Entendo que, efectivamente, há partidos mais aconselháveis que outros e sou de opinião que não há conciliação entre uma perspectiva de esquerda e uma perspectiva de direita, autoritarista e reaccionária. Continuo a perfilhar convictamente estes pontos de vista, mas isso não me impede de apoiar uma personagem interessante, de grande carisma pessoal como é a Lourdes Pintasilgo. Que, a meu ver, está muito mais ligada a uma conotação de esquerda, de mudança, do que os outros. Há quem se esqueça que o Salgado Zenha foi o arauto do anti­gonçalvismo, do anti­pêcêpismo, da ‘Carta Aberta’. E que foi pela boca dele que se fizeram os mais duros ataques à CGTP. Há quem se esqueça, mas eu não tenho falta de memória, pelo menos nestas coisas… Podes escrever isto tudo que eu disse…

E lá estamos nós a falar de política…

Como é que da política se chega à música e da música à consciência? Eh, pá, eu acho que as coisas podem estar ou não ligadas, depende do lado para onde estivermos virados. Mas o que é preciso é criar desassossego. Quando começamos a procurar álibis para justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado! E, quando isso acontecer comigo, eu até agradeço que os meus amigos me chamem à atenção e me critiquem. No campo da música continuo interessadíssimo, nesta área e fora dela. Acho que, por exemplo, é necessário que exista um grupo como o Opus Ensemble, um músico como o Victorino d’Almeida. Ou como o Rão Kyao, embora nem sempre goste das últimas coisas dele – mas isso é outro problema. E, na área do chamado rock português, em relação à qual eu sou muito reticente, há, por exemplo, os Jáfumega, que eu vi há tempos e de que gostei bastante, fiquei sinceramente impressionado. Estou interessado, sim, pelo que por cá se faz. Acho que, acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de ‘homenzinhos’ e ‘mulherzinhas’. Temos é que ser gente, pá!

José Afonso em entrevista a Viriato Teles, in «As Voltas de um Andarilho», Assírio & Alvim, 2009 (Entrevista publicada originalmente no Se7e de 27.Nov.1985)

Mapa de gravações para o «Galinhas do mato» (Arquivo José Mário Branco). Clique na imagem para aceder a mais documentos.
Impossibilitado de cantar devido ao avanço progressivo e impiedoso da sua doença, José Afonso faz editar, em finais de 1985, um novo LP de originais. Dos dez temas que o compõem, apenas dois (Escandinávia Bar e Década de Salomé) são por ele interpretados. Aos restantes emprestaram a voz Helena Vieira (Tu Gitana), Né Ladeiras (Benditos), Luís Represas (Agora) Janita Salomé (Moda do Entrudo, Tarkovsky, Alegria da Criação), Catarina e Marta Salomé (Galinhas do Mato) e ainda José Mário Branco (Década de Salomé, de parceria com Zeca). Um vasto grupo de amigos decidiu apoiar o cantor neste disco novo - e renovado, apesar da doença - contribuindo para, de novo, dar corpo a um notável trabalho de José Afonso. Não é favor dizê-lo: Galinhas do Mato é mesmo um grande disco, e nem a impossibilidade física de o seu autor participar a cem por cento na sua feitura conseguiu retirar a este trabalho um grande brilho e uma grande sinceridade. A prova, afinal, de que as palavras e a música de Zeca são mesmo capazes de resistir a tudo. Mesmo à ausência da voz que uma doença estúpida conseguiu calar.
Viriato Teles
jornalista