ALINHAMENTO
01. Saudades de Coimbra
LETRA Afonso de Sousa
MÚSICA Mário Faria da Fonseca
02. Fado d’Anto
LETRA António Nobre
MÚSICA Francisco Menano
03. Senhora do Almortão
LETRA/MÚSICA Popular, Beira Baixa
04. Mar alto
LETRA Edmundo de Bettencourt
MÚSICA Mário Maria da Fonseca
05. Fado da sugestão
LETRA: Atribuível a Edmundo de Bettencourt
MÚSICA Alexandre de Rezende
06. Balada do Outono
LETRA/MÚSICA José Afonso
07. Inquietação
LETRA Edmundo de Bettencourt
MÚSICA Alexandre de Rezende
08. Fado dos olhos claros
LETRA Edmundo de Bettencourt
MÚSICA Mário Faria da Fonseca
09. Vira de Coimbra
LETRA/MÚSICA Popular
10. Crucificado
LETRA Francisco Bastos
MÚSICA Fortunato Roma da Fonseca
FICHA TÉCNICA
edição
Arnaldo Trindade & Cª. Lda. (Orfeu FPAT 6011)
gravação
Estúdios Rádio Triunfo
músicos
Octávio Sérgio: Guitarra portuguesa
Durval Moreirinhas: Viola
Júlio Pereira: Cavaquinho
Janita Salomé: Viola
capa
José Santa-Bárbara
fotografia
Fernando Negreira
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LP/33rpm
Fados de Coimbra e outras canções, 1981
Acabas de gravar um disco com fados de Coimbra. Há grande confusão quanto à qualidade deste tipo de música. Que dizes?
Criou-se aí, sobretudo entra a malta progressista, uma ideia de que o fado de Coimbra é, digamos, um produto reacionário. De inferior qualidade. Que exprimia um sentimento piegas, lamecha, etc. De facto, grande parte dos fados de Coimbra, assim como muitos fados de Lisboa, têm essas características. Mas, o que é certo é que esse tipo de fado correspondeu a um gosto que surgiu, em determinada altura, em Coimbra. Era uma canção mais ou menos dominante, aceite pela classe dominante, aceite pela classe estudantil, mas aceite também por outro tipo de camadas. Por vezes, o próprio estudante alternava a cantar com cantores não estudantes, normalmente em locais ao ar livre. É um tipo de música que está ligado a uma época. E também conheceu intérpretes de grande qualidade – o João de Deus, o Menano, o Edmundo Bettencourt e tantos outros.
Num determinado país não se pode traçar assim, por via burocrática, uma arte ou uma linha. Uma pedagogia artística, digamos assim, que esteja dissociada de aspetos de tradição. Por que não se há-de cantar o fado de Coimbra? Agora, fazem-se serenatas monumentais com figuras ligadas à direita, e cantando os fados mais imbecis, com as letras mais tolas e mais atrasadas que se fizeram em Coimbra, devidamente protegidos pela polícia. Quando eu cantava fados de Coimbra nas ruas e não tinha devida autorização, não nos livráramos da intervenção policial, por vezes violenta.
A direita tem tentado convencer as pessoas de que o fado e o passado de Coimbra são exclusivo dela, direita. Quer dizer, a paladina do passado de Coimbra é a direita. Isto é perfeitamente falso. Cantores como Bettencourt, que tinha uma perspetiva inteligente e progressista da cultura não tem nada a ver com os MIRNs (grupo de extrema-direita) nem com esse tipo de reacender praxes. Quando muito, o que se pode dizer é que o fado de Coimbra não tinha, não estava ligado a nenhuma atitude política.
É o que pretendes reafirmar com este teu disco?
Este disco obedece a dois critérios. Primeiro, mostrar que um individuo de formação progressista, que esteve e está ligado a Coimbra, pode perfeitamente cantar os seus fados com uma certa qualidade artística. Por outro lado, é uma homenagem pessoal que eu faço a Edmundo Bettencourt.
Entrevista de Maria Eduarda a José Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal «em marcha».
“Uma espécie de Mediterrâneo da música portuguesa”. O fado de Coimbra, desenhado no mapa da geografia mental de Janita Salomé, encontramo-lo neste mar interior. Este lugar imaginado, explique-se, deve a sua localização precisa à assimilação de peças vindas de origens díspares e que são suavemente sugadas por essa peça maior, centrípeta, que é Coimbra, uma cidade ligada umbilicalmente a quem nela vive de passagem, a quem lhe pede uma cama de empréstimo por uma, duas, vinte, duzentas, duas mil noites e depois segue viagem. A estudantada marcha depois rumo às suas vidas, mas fica quase sempre um fio inquebrantável de ligação a uma canção que já antes circulava pelas ruas estreitas serpenteando a partir da Sé Velha e por lá continuará a cirandar, a romantizar os anos tradicionalmente de boémia que antecedem o mergulho abrupto na vida adulta, no redemoinho imparável das responsabilidades. Mediterrâneo, assim, pela confluência. A Coimbra chegam estudantes vindos de todo o país, desemalando não apenas projecções de futuro, mas também as suas culturas de origem. O fado de Coimbra, sobretudo na viragem para o século XX, é um íman que atrai estilhaços de outras tradições musicais, mais audivelmente a açoriana, ainda que a nenhuma vede a entrada – tal como antes acolhera a guitarra portuguesa, alegadamente trazida, por volta de 1870, por Jayme Guitarrista (Jaime d’Abreu), um estudante regressado das férias na sua terra. Em grande parte, a fixação dessa matriz de várias cabeças cantando uma mesma canção com diferentes sotaques deve-se, então, a Augusto Hilário, autor do famoso “Fado Hilário”, popularizado por Amália Rodrigues e Maria Teresa de Noronha. A canção de Coimbra será depois parcialmente expurgada do tom romântico, alcandorando-se numa ambição poética investida por gente como Edmundo Bettencourt, na época de ouro do fado de Coimbra – o mesmo que dizer durante os anos 1920 e 30. Bettencourt – membro do grupo Presença ao lado de Miguel Torga, Branquinho da Fonseca, José Régio e outros – seria não apenas um intérprete de excepção como igualmente autor inspirado de letras e músicas, valendose dos talentos de Artur Paredes para revolucionar o estilo coimbrão. Aos poucos, com a rádio a servir igualmente de sedimento, os estudantes começam a fazer circular o fado de Coimbra no sentido contrário. A tradição local é então devolvida numa “forma final” às suas fontes. No Alentejo, são vários os pontos em que o fado de Coimbra se instala, graças a estudantes e exestudantes regressados com ensinamentos para além dos estritamente académicos. Um deles, recorda Janita Salomé, “era bastante mais novo que os intérpretes dessa geração de oiro, mas tinha-os acompanhado e ficou com essa memória”. Tal figura seria fundamental no despontar na vila alentejana de Redondo de uma série de cantores que não precisavam do berço original para encenar a canção coimbrã. “No Redondo havia uma forte tradição de cantar fados de Coimbra e o meu pai era um dos cantores que pontificava”. Sem espanto, quando Janita começa a iniciar-se nas cantorias, os fados de Coimbra não lhe são menos familiares do que as modinhas alentejanas e, quando chega a altura de gravar o seu disco de estreia, Melro, vira-se com naturalidade para aquilo que conhece: “Era o que trazia das minhas experiências – os fados de Coimbra e, por outro lado, a música tradicional, da qual sempre estive próximo”. Mas sabendo-se, ainda assim, um estranho em terras musicais beirãs que conhecia em primeira mão por via do tal refluxo migratório, o alentejano pede ajuda a Zeca – que conhecera ainda na adolescência como “dr. José Afonso”, quando Janita cantava num conjunto de baile na época balnear algarvia e Zeca por lá dava aulas e cantava uns fados – na selecção dos temas escritos por António e Francisco Menano. “Depois, na casa da minha mãe, no Redondo, ele ensinou-me, introduziu-me na técnica de colocar a voz mais correctamente, mas não deixei de cantar os fados à alentejana, pouco fiel”, lembra Janita. “O Zeca nunca pôs isso em causa, porque não era um purista do fado de Coimbra, pelo contrário”. É Zeca também quem sugere a Janita os dois acompanhadores para a metade do disco que devia soar às noites beira-Mondego: Durval Moreirinhas (viola) e Octávio Sérgio (guitarra portuguesa). Ambos seus velhos conhecidos. Octávio começara a acompanhar Zeca quando este era professor no Algarve e o jovem guitarrista realizara por lá uma digressão com o Coral de Letras de Coimbra: “Na altura eu sabia os fados todos, estava muito bem documentado e qualquer fado que ele cantava eu fazia logo o acompanhamento. Ele gostou muito e ficou admirado, porque estava habituado a uma série de complicações com os tons”. Durval, por seu lado, saíra do liceu quando Zeca entrara, mas o caminho de ambos não demoraria a cruzar-se nos encontros do Orfeon e da Tuna. Criariam, inclusivamente, uma confiança e uma cumplicidade tais que Moreirinhas acompanharia com frequência o cantor nas ausências de Rui Pato. De regresso a 2013 de olhos postos em 1980: Octávio Sérgio ainda hoje pensa que a sua presença em Melro se deve a um convite feito a Durval Moreirinhas que o teria levado por acréscimo. Daí que tenha bem presente o contentamento de ver surgir “o Zeca a reger uma das peças que o Janita cantou”, “Fado do Alentejo (Maria Teu Lindo Nome)”. “Ele queria dar um andamento rápido, porque o Menano cantava aquilo muito lento e então esteve a reger”. No final da gravação, tem a certeza, foi então que Zeca se virou para os músicos e anunciou “Vocês é que me vão acompanhar”. Fados de Coimbra, num certo sentido, começa então num longínquo Redondo. Durval quer ir atrás. Alentejo e Coimbra, uma vez mais. “No grupo de fados do António Portugal e do António Brojo, a que o Zeca pertencia, pontificava um cantor dos Açores, o dr. Machado Soares, que eu também acompanhei”. Machado Soares, caso a ligação não se estabeleça, é o autor da famosa “Balada da Despedida” (conhecida por “Coimbra tem mais encanto”), mas não é esse o encanto que preenche as memórias de Moreirinhas, preferindo recordar que os dois “passavam a vida a cantar melodias alentejanas a duas vozes”. “Se alguém puxasse de um gravador, que não havia na época, e gravasse aquilo... Era das coisas mais espectaculares que ouvi na minha vida”. No entanto, gosta de frisar, “o Zeca começou por ser um cantor de fado de Coimbra – parece que têm medo de dizê-lo, que era um fadista de capa e batina, trupista, fazia praxe e jogava futebol na Académica”. O desvio, segundo o próprio Zeca ao jornal Se7e em 1981, dever-se-ia a “um intenso período de actividade antifascista e tudo o que fosse tradição tinha de ser rejeitado”. “Foi uma atitude absolutista, de certo modo despótica, que foi necessário corrigir com o tempo e hoje está a ser corrigida. [Mas] nunca tive a atitude condenatória de dizer que o fado de Coimbra é uma grande merda por isso acabou, ponto final”. Durval acrescenta que o alvo da incompatibilidade de Zeca Afonso não era tanto o fado de Coimbra quanto a guitarra que trazia atrelada. “O Portugal e o Brojo eram violentos a tocar e aquilo abafava o Zeca completamente”. Octávio concorda que “a guitarra o atrofiava porque era muito batida, muito marcada; com a viola estava mais à-vontade, não o espartilhava. Havia muito arame na guitarra”. E o arame, já se sabe, não aperta com parcimónia. Durval Moreirinhas estava lá, na fila mais primeira que pode haver, quando Zeca encetou o primeiro abanão na sua carreira. Foi à sua viola e à de José Niza que se encostou, em 1962, para gravar a “Balada Aleixo”. “As baladas são uma música do século XIII, da Provence”, defende o viola. “Na Europa, houve uma altura em que as baladas eram consideradas banais e até insultuosas, era uma musicalidade menor. O Zeca aproveita a parte romântica das baladas e mete-lhe as letras que nós sabemos – com uma agitação política e social. Aí é que ele brilha”. Durval diz ainda que nunca os seus ouvidos voltaram a escutar uma tão flagrante capacidade inventiva, uma base tão estreita para tanto mundo nela florescida. “Ele só sabia aquelas duas ou três posições na viola e isso deu-lhe para fazer aquela panóplia de coisas. Conseguia estar na mesma posição e fazer todos aqueles ornamentos com a voz, uma coisa espantosa”. Como Zeca, acredita, terá havido Jacques Brel e pouco mais. Ao mesmo tempo que lamenta o esquecimento em que caiu esta faceta fadista de Zeca, Durval volta ao futebol, lembrando um outro homem, o Cerqueira (como o cantor era conhecido dentro de campo), “jogador extraordinário, de uma habilidade brutal mas sem fôlego, só aguentava meia hora”. Em 1981, por alturas de Fados de Coimbra e Outras Canções, o fôlego estava anda mais comprometido, a doença já a atrapalhar-lhe o básico da vida. “Já só respirava de meio do peito para cima”, descreve Octávio Sérgio. Durval, por seu lado, garante que a memória não lhe prega nenhuma partida e que, por vezes, como tantos anos antes acontecera no futebol, havia mais palavras do que reserva de ar e via-se obrigado a parar. “Para este disco”, diz o viola, “trouxe com ele um fisioterapeuta japonês, que tinha uma solução. Quando lhe faltava o ar, deitava-se no chão e o fisioterapeuta metia-lhe um joelho no tórax, dizendo que o diafragma era como uma régua. Resultava: o Zeca levantava-se e cantava aquilo maravilhosamente”. Fados de Coimbra e Outras Canções, gravado nesse ano de 1981, funcionaria como homenagem de Zeca a Edmundo Bettencourt, de quem o seu pai fora amigo. Para o disco, Zeca recupera dois dos temas que gravara originalmente em 1960, com o grupo de fados e guitarradas de Coimbra, cujo 45 rotações seria baptizado com o primeiro tema saído da sua imaginação: “Balada do Outono”. Para Moreirinhas, essa primeira versão – sucedida, pouco depois, por outra gravada apenas com a viola de Rui Pato – nunca teria sido do inteiro agrado de Zeca, incomodado com o forte cunho imposto pela guitarra de António Portugal. A outra música resgatada a esse passado, “Vira de Coimbra”, apareceria numa versão bastante diferente, única excepção no acompanhamento de Moreirinhas e Sérgio, trocados pela viola de Janita Salomé e pelo cavaquinho de Júlio Pereira. “O Zeca estava muito ligado à música tradicional das Beiras, mas esse vira tem sobretudo que ver com as memórias dele de estudante”, diz Janita. Ainda e sempre, Zeca falaria ao Se7e numa leitura política válida da gravação do disco: “O fado de Coimbra não é de direita nem de esquerda, é um depósito de carácter cultural, é um produto que tem a sua época e se justifica em determinado contexto coimbrão. Então, eu resolvi – em parte porque sempre tive uma grande admiração por Edmundo Bettencourt e para tentar dar a ideia de que o fado de Coimbra não é exclusivo da direita – gravar este disco”. Zeca Afonso, revolucionário, inquieto, insubmisso, deixou o fado devido ao conservadorismo e não poder eternizar-se num mesmo lugar, e a ele voltou quando o sentiu ameaçado, ali detectando uma “memória histórica” colocada em perigo, abafada pelo crescente contágio do imperalismo cultural anglo-saxónico. Acompanhando Zeca no mítico concerto no Coliseu dos Recreios, em 1983, Octávio Sérgio – que resume a sua relação musical com Zeca na frase “Quem ganhou fui eu, não foi ele” – ainda se emociona ao transportar-se novamente para essa noite. “Saí de lá arrasado de emoção”, confessa. Em palco, ao ouvir-lhe uma vez mais “Balada de Outono”, esbarrou num dos tantos versos da noite e quase se lhe escapou furtivamente uma lágrima. “Ó ribeiras chorai que eu não volto a cantar” tinha ali um outro peso, traído, violento, de quem se sabia numa despedida. Zeca Afonso gravaria ainda dois discos de estúdio. Mas Fados de Coimbra e Outras Canções, último para a Orfeu de Arnaldo Trindade, carrega consigo uma reconciliação com os seus primeiros anos, uma forma de se desembaraçar de amarguras e de lançar, naturalmente, amarras até ao seu pai. Guarda uma fortíssima simbologia: de uma não recusa do passado, de voltar a fazê-lo presente, de nos lembrar subtilmente que nada do que está para trás deve ser deixado desamparado. As canções daquele que foi o maior autor da Música Popular Portuguesa continuam aí vivas, de sangue fervido a descer as ruas. Porque sempre que ao povo falha a voz ou precisa de outra mais forte para se ouvir, sempre que falta o equilíbrio, tremem as pernas e a luta se impõe, as vozes e as mãos procuram onde se agarrar e encontram Zeca Afonso. Como uma parede, como uma rocha. Não, não vai a lado algum. Fica ali, à espera que o reclamemos como nosso, como parte de nós.