Conheci Zeca Afonso por intermédio do meu pai, ao começar a tocar guitarra portuguesa e guitarra clássica de acompanhamento com ele. Já não me lembro em que concerto toquei pela primeira vez com o Zeca, mas lembro-me de alguns antes do Concerto no Coliseu (Lisboa), que representou não só o culminar da sua carreira como, infelizmente, também o seu fim, dado que o Zeca, já bastante
doente, falece poucos anos depois. Lembro-me de ir a casa dele e de notar a fantástica colecção
de discos (LP’s de vinil, na altura) de música erudita, ou clássica, que o Zeca possuía. Não era talvez muito normal pensar num cantor de baladas de Coimbra e de canções de intervenção tão conhecedor de música clássica, mas com o recuo dos anos (na altura teria 13 ou 14 anos, pouco mais) percebo que era, que tinha de ser, mais vulgar do que na época pensava. E não só no caso do Zeca. Carlos Paredes, o meu pai, e muitos outros que escreviam guitarradas, canções e fados, tinham um conhecimento de várias formas de expressão musical, da popular e tradicional à erudita, que lhes possibilitou a onda de criatividade de alto nível que se verificará entre os anos 60 e 80, grosso modo. Os irmãos Salomé ao Sérgio Godinho, do Zeca ao Carlos Paredes, o Adriano, o meu pai, e muitos, muitos outros, demonstraram a assimilação dessas fontes nas suas obras que ainda hoje são clássicos da música portuguesa em geral. O Zeca não seria pois uma excepção, mas a abrangência dos seus gostos era imensa. Obras de compositores popularizados, como Bach ou Beethoven, encontravam-se lado a lado com, na altura (e em Portugal), obscuros sinfonistas do século XX, como Ralph Vaughan Williams ou Sibelius. Aliás, foi na casa dele que pela primeira vez encontrei discos destes compositores, raríssimos nas poucas lojas de discos clássicos de Lisboa.
Mas o Zeca não se limitava a ouvir distraidamente as obras, nem sequer ouvia somente as mais populares de alguns destes nomes, como Stravinsky. Recordo-me de uma vez que conversei com ele (deve ter sido até a primeira vez, pois o Zeca, ao saber pelo meu pai que eu estudava música
clássica, entabulou uma conversa comigo antes, ou depois desse concerto em que participei), e de ter mencionado Stravinsky como um compositor que me agradava, e citei duas obras, O Pássaro de Fogo e o Concerto para Violino. Para meu espanto, o Zeca não só conhecia a primeira (enfim,
embora de Stravinsky, era já há muitas décadas um clássico popular do século XX, mesmo em Portugal) como falou da segunda, na época uma obra neoclássica dos anos 30 muito pouco tocada e muito pouco conhecida em Portugal, com entusiasmo. Lembro-me que as palavras exactas dele sobre O Pássaro de Fogo foram “É lindíssimo!”. Sobre o concerto não me recordo do que disse, mas recordo da familiaridade com a obra. A visita a casa dele confirmou essa impressão de erudição auditiva que me fez admirar ainda mais o Zeca, de cuja música já gostava, como um músico culto e sério. O Zeca referia-se constantemente a mim (e ao meu pai) nos concertos em que participava, em termos muito elogiosos, nomeadamente no Concerto no Coliseu (Lisboa), o que, para um rapaz adolescente que mal começara a tocar em público, era extremamente gratificante e transmitia confiança. O Zeca demonstrava ser um grande artista e um ser humano generoso e sensível, um homem íntegro que mais tarde reencontrei na figura de Fernando Lopes-Graça quando comecei a estudar com este. Por vezes tocávamos em sítios menos dignos, abusavam do Zeca, cuja generosidade para contribuir para causas e desapego ao dinheiro permitiam a alguns aproveitarem- -se da sua presença para organizaram concertos em lugares e condições inenarráveis. Uma vez tocámos num descampado, numa tenda de tipo das de circo, onde nem sequer havia microfones e altifalantes de jeito, tendo os “organizadores” recorrido àqueles dos feirantes, com campânula… o Zeca nessa altura manifestou-se com desagrado pelas condições indignas, mas cantou à mesma, e nesse local de anedota, que estava cheio de populares, obteve um grande sucesso independentemente dos obstáculos logísticos e técnicos. O mesmo acontecia, embora ainda mais, com o Adriano Correia de Oliveira. Essa geração era generosa e fazia da canção uma arma cultural, e por vezes eram abusados e tratados muito abaixo do que mereciam. A última vez que vi o Zeca foi quando, já nos meses finais, este se deslocou a Almada (o carro era conduzido pela mulher, o Zeca já mal conseguia falar, quanto mais conduzir ou mexer-se. Ficou, aliás, dentro da viatura e falou-nos pelo vidro aberto). Foi uma visita de despedida aos seus amigos e colaboradores musicais, suponho que a terá feito a muitos outros enquanto conseguiu articular algumas palavras. Já na altura eu e todos sabíamos que o Zeca tinha muito pouco tempo de vida, que os músculos ligados à respiração
parariam e que ele sufocaria. Não obstante, o Zeca não trazia um discurso lamurioso. Com a voz muito fraca falou connosco, confesso que já não me lembro exactamente de que falou, mas lembro- -me que foi uma pequena conversa normal, como se tivesse passado casualmente por ali e resolvesse visitar um amigo que já não via há algum tempo. Nem sei se terá anunciado a visita, talvez a Zélia tenha telefonado primeiro ao meu pai, é possível. Lembro-me de termos ido à rua, onde a Zélia estacionara o carro, e de termos falado com ele (mais o meu pai do que eu, como é
evidente). Infelizmente, só tornámos a estar perto dele quando do funeral em Setúbal, que juntou milhares e milhares de pessoas nas ruas. Mas já muito antes dessa triste tarde eu sabia que tinha sido um privilegiado por ter conhecido e tocado com esse grande músico e esse grande homem.
a